Por Roberto Amaral*
no blog do Esmael Moarais
Excluída a hipótese do imprevisível – embora no Brasil
o improvável sempre encontre formas de alterar o andamento dos fatos, a lógica
dos números de hoje e, a partir dela, as especulações dos “especialistas” (na
verdade escafandristas do óbvio), indicam que o ex-presidente Luiz Inácio Lula
da Silva deve assumir a presidência da República no dia 1º de janeiro de 2023.
Mas, talvez, para o comum dos mortais, os militantes, seja desaconselhável
considerar o pleito como “favas contadas”, quando quase um ano de justificadas
apreensões ainda nos separa da posse previsível e desejada. Até lá, o candidato
terá de enfrentar uma longa campanha eleitoral que já se sabe juncada de
ataques pessoais, fake news e, assim, violenta e suja, pois nada a não ser o
crime e a incivilidade podemos esperar de um processo que terá entre seus polos
uma súcia que já nos mostrou do que é capaz. O bolsonarismo vem desde sempre
expondo as mais claras provas de inaptidão para o processo democrático,
ausência de limites morais e cívicos; é aconselhável, pois, que petistas e
democratas de um modo geral tenham sempre presente a tentativa de golpe no 7 de
setembro do ano passado. Desmontado por uma correlação de forças naquele
momento desfavorável, não deve ser dado, porém, como descartado pelas
maquinações do capitão e seus generais do terceiro andar do planalto. A
sabedoria popular ensina que “gato escaldado teme água fria”.
Na disputa eleitoral deste ano, mais do que em 2018 –
pois a díade de hoje é reeleição ou cadeia –, o capitão lançará mão sem meias
medidas tanto do poder econômico quanto do aparelhamento do Estado, de que
agora dispõe para manipular o processo eleitoral; perdido este, como se prevê,
não hesitará a extrema-direita, sob seu comando, em procurar mascarar o
resultado desfavorável para assim empestear de ilegitimidade o pleito (como
intentou Aécio Neves em 2014; como intentou Trump, ícone do capitão, em janeiro
do ano passado) e provocar o caos, no qual nada tem por temer, senão tudo
ganhar, pois dando-lhe retaguarda está o “braço forte” dos engalanados que
fazem sua coorte e se refestelam em um vasto número de sinecuras, como essa que
ocupa o general Fernando Azevedo, ex-ministro da defesa de Bolsonaro, nomeado
diretor-geral do Tribunal Superior Eleitoral.
O que não deu certo nos EUA não está necessariamente
condenado a não dar certo no Brasil. Cautela e caldo de galinha nunca fazem
mal.
Em seu programa da última quarta-feira na TV GGN, o
jornalista Luiz Nassif trouxe a discussão sobre o golpismo renitente, e
denuncia o ministério da defesa, chefiado pelo general Braga Neto (candidato a
candidato a vice do capitão) como o centro difusor das conspirações da
extrema-direita (à qual está vinculado) quando procura desacreditar o sistema
eletrônico de votação, com o claro objetivo de conturbar o jogo eleitoral, a
boia de salvação do bolsonarismo em seu naufrágio político. A propósito, o
ministério da defesa, extrapolando suas atribuições, chegou mesmo a elaborar e
divulgar um “relatório” no qual estariam indicadas “50 dúvidas sobre a segurança
das eleições”. O que tem a ver esse ministério com o processo político, para
dedicar-se a especulações sobre as urnas eletrônicas?
A Polícia Federal, em inquérito instaurado por
determinação do STF, conclui pela grave acusação de o presidente Jair Messias
Bolsonaro, o capitão indesejado, com o auxílio de cúmplices, haver cometido o
crime de violação de dever funcional ao expor em declarações à imprensa e em
redes sociais dados reservados sobre o sistema de segurança das urnas
eletrônicas, “abrindo informações sigilosas para a ação de criminosos em todo o
mundo”.
O tom subiu quando o ministro Luiz Roberto Barroso,
falando na condição de presidente da mais alta corte eleitoral, na inauguração
das atividades do poder judiciário deste ano (dia 1º deste fevereiro),
denunciou o crime do presidente (os termos são seus) ao vazar dados que
“auxiliam milícias digitais e hackers” a invadir os equipamentos brasileiros. O
TSE identifica o crime e o criminoso, e tem comprovada sua culpabilidade; não
pode, amanhã, a pretexto de quaisquer conveniências, deixar impune o meliante.
Eleito, a Lula caberá consolidar a posse, a grande
preocupação que dominou Tancredo Neves a partir da consagração pelo colégio
eleitoral, o pesadelo de Juscelino Kubitscheck em 1955, salvo na undécima hora
pelo contragolpe do general Teixeira Lott.
Empossado, precisará governar, o que direita e
extrema-direita brasileiras não permitiram a Vargas, Jango e Dilma Rousseff.
Porque, no Brasil, o processo eleitoral não se encerra com o pronunciamento
irrevogável da soberania popular. Quando se trata da emergência de uma coalizão
que se inclina para um projeto de centro-esquerda (mais do que isso não nos é
permitido), a nova ordem política, para governar (ademais de dispor-se a rever
seu programa de campanha) precisa ter presente os condicionantes de “outros
poderes” da República não previstos pela tríade de Montesquieu: o capital
financeiro nacional e internacional, os grandes produtores, os interesses do
grande império, que atuam por todos os meios, seja mediante o boicote e as
pressões, seja através os meios de comunicação de massa (seu aparelho
ideológico de luta), seja mediante o controle do Congresso, produto direto da
traficância do poder econômico. Daí a formação reacionária e corrupta de nossas
casas legislativas — com uma maioria sempre a serviço do atraso, da
preeminência da casa-grande sobre as classes subalternizadas e do golpismo –,
cujo perfil político e moral é traçado pelo que representam grupos de
interesses como Centrão, base de poder de figuras do naipe de Eduardo Cunha e
Arthur Lira, base do impeachment de Dilma, base de sustentação do bolsonarismo,
e seu esteio na campanha eleitoral deste ano.
Lula não esconde que, candidato, sua preocupação é com
a governabilidade, daí os acenos a Geraldo Alckmin e a paciência com que
negocia com partidos como o PSB, além de velhos e novos caciques políticos,
como Renan e Kassab. Para falar aos empresários não precisa mais de uma carta
aos brasileiros, pois a fiança é dada pelo certificado de seus dois governos.
Desta feita não se trata de trazer para o presente o país do futuro – a
expectativa de 2002 –, mas de impedir que o passado continue nos governando.
Seu projeto político é a conciliação nacional, a ser perseguida por um governo
centrado no pragmatismo político, a um tempo tática e estratégia da
governabilidade.
O leitmotiv do pacto é a conciliação de classes, o
antigo programa do varguismo, frustrado. É um risco, principalmente quando
assim negociado pelo alto, mas é o que temos para hoje. Estamos na fronteira da
transição da extrema-direita ao centro subsumido pelo PT (daí a
impraticabilidade da “terceira via” sonhada pela direita); é a promessa de,
mais à frente, nos candidatarmos a uma socialdemocracia progressista, de onde
possa, até, e ainda mais adiante, surgir um projeto socialista. Mas isso está
em disputa: a história recente mostra que é muito difícil avançar em aliança
com as forças do atraso.
Em sua honra, porém, digamos que o “novo petismo”
conserva distância regulamentar da socialdemocracia atrasada, o que é a
garantia de que a conciliação não se fará às custas das grandes massas, que,
como nos governos Lula e Dilma, voltarão a estar presentes nas planilhas da
tecnoburocracia. A biografia de Lula é o penhor desta expectativa, a base de
seu programa de salvação nacional, no qual cabem todas as forças políticas (e
com todas o ex-presidente procura o diálogo), menos a extrema-direita, cujo
destino é o corner no espectro político brasileiro, para onde caminha o
bolsonarismo, do qual a Faria Lima, pelo menos momentaneamente, já dá sinais de
enfado, depois de havê-lo cevado.
Muito do que poderá ser o esperado novo governo de Lula
está a depender, tanto quanto de sua notória competência como negociador, de
uma batalha até aqui negligenciada pelas organizações populares e por ele
próprio, a composição do futuro congresso. Hoje, por exemplo, os diversos
segmentos de esquerda representam um pouco mais de cem votos na Câmara Federal,
um colégio de 513 parlamentares. Foi este placar que instrumentalizou Eduardo
Cunha em 2016.
Quanto mais tiver de negociar, tanto mais terá de ceder
o governo.
O PT conhece, por haver pago, o alto preço cobrado pela
governabilidade a um presidente em minoria no Congresso, e sabe muito bem
quanto custa a sustentação de um governo quando as graças do apoio popular se
tornam arredias. Em todas as crises vivenciadas, nada obstante sua invejável
inserção popular, privilegiou as negociações pelo alto e selou compromissos, os
quais, todavia, não resistiram ao primeiro movimento da casa-grande. É possível
que, agora, aprendida a lição, venha a confiar mais nas organizações populares,
promovendo as alianças que se firmam na base social, e que se podem
concretizar, como já indicou João Pedro Stédile, mediante a criação de círculos
ou movimentos populares autônomos, comités pró-Lula que se espalhariam, desde
agora, por todo o país, com o objetivo de, vencidas as eleições, dar
sustentação política ao governo. Ademais, poderá garantir que as concessões,
sendo necessárias, sejam as menores possíveis.
***
Isis Dias de Oliveira – Completaram-se neste janeiro 50 anos do assassinato de
Isis Dias de Oliveira, vítima da ditadura militar, aos 29 anos. Está na lista
dos “desaparecidos”. Era presidente da República o general Emílio Garrastazu
Médici e comandante do I exército o general Sylvio Frota. Todos enterrados com
honras militares. O corpo de Isis foi negado à sua família.
*Roberto Amaral,
escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia.