...o
Professor Bresser Pereira chamou de “estranho casamento” entre um nacionalista
de extrema direita e o neoliberalismo. A elite e as altas camadas da classe
média apoiam o neoliberalismo, enquanto as baixas camadas da classe média
apoiam o nacionalismo de direita. Um casamento que pode ou não durar muito, mas
em ambos os casos inexiste a consciência da necessidade de um projeto nacional
de desenvolvimento para o Brasil...Créditos da foto: (Arte/Carta
Maior)
Por Liszt Vieira – Carta Maior
O que me preocupa é a deformação, a abjeção
humana, provocadas pela organização social baseada na exploração econômica ou
na dominação política de muitos por poucos.
Celso Furtado, New Haven, 01.09.64 in Diários Intermitentes
Na conhecida concepção de Max Weber, o Estado detém o uso legítimo da dominação
e da força física em determinado território. Weber explica a dominação com base
em três critérios: a dominação tradicional, baseada em costumes, a carismática,
baseada no apelo de um grande líder, e a legal, baseada na lei. Já Marx explica
o Estado como o instrumento executivo da classe dominante.
São conceitos muito úteis, mas não creio que são suficientes para explicar a
Tripartição dos Poderes que ocorre em vários Estados brasileiros,
principalmente o Rio de Janeiro. Por Tripartição não me refiro à clássica
Separação dos Poderes em Executivo, Legislativo e Judiciário que continua
existindo, mas não abrange a totalidade do Poder tal como é exercido.
Com todo o respeito a Montesquieu e Weber, a Tripartição de fato se dá entre o
Poder Público (incluindo as três esferas), a Milícia e o Tráfico de Drogas.
Todas essas fontes de poder usam a força física para controlar o território que
dominam com as regras que impõem. Claro que não há legitimidade do ponto de
vista legal, mas muitas vezes esse poder paralelo conta com o apoio das
comunidades que controlam. Frequentemente, há sobreposição, funciona a regra do
Estado e da milícia ou tráfico. Às vezes, o Estado inexiste e determinado território
é “governado” pela milícia ou tráfico.
No caso das milícias, a semelhança com o Estado é maior, porque impõem o
pagamento de taxas e impostos aos moradores das áreas onde dominam. Já os
traficantes comportam-se em geral como comerciantes de mercadoria que, por ser
ilegal, exige o uso da força. Muitas vezes, porém, impõem suas regras de
comportamento e segurança na área que controlam.
Em ambos os casos, o Estado oficial está ausente. Em seu lugar, o Poder de
controle do território, de impor regras de conduta e cobrar impostos foi
apropriado pela Milícia ou pelo Tráfico. Às vezes, há duplicidade de poder
quando o Estado se faz presente com escolas, postos de saúde, segurança etc. Em
outros, a ausência do Estado é suprida pelo poder dos milicianos ou
traficantes. Esse quadro é hoje sobredeterminado pela ação de um Estado
autoritário que elimina direitos e caminha em direção a um modelo próprio, um
“fascismo à brasileira”. Enquanto o fascismo italiano combateu a Máfia, o nosso
fascismo, ainda cozinhando no forno, já demonstrou ter boas relações com a
máfia dos milicianos e já fez muitas vezes acordos pecuniários com os
traficantes. A intervenção militar na segurança pública do Rio de Janeiro em
2018 ignorou a milícia e só cuidou do tráfico. Já a Polícia está cansada de
fazer “arreglos” com os traficantes.
A situação política no Brasil começa a apresentar elementos e configurações
próximas aos regimes fascistas que dominaram a Itália e Alemanha a partir dos
anos 30 do século passado até o final da 2ª. Guerra Mundial. Claro que o
fascismo brasileiro terá características próprias e se encontra ainda em
formação, enfrentando resistências em algumas instituições e na sociedade
civil. Mas já é evidente que, capitaneado pelo Executivo, conta com o apoio de
importantes setores do Judiciário e do Legislativo, como também de cerca de um
quarto da população que apoia as medidas liberticidas e antissociais do governo
Bolsonaro.
É muito interessante e instrutivo ler o pensamento e as observações de Celso
Furtado a respeito do fascismo italiano no pós-guerra no livro Diários
Intermitentes – 1937-2002, organizado por Rosa Freire D’Aguiar.
Encontramos observações e análises que parecem terem sido feitas para o Brasil
de hoje. Vejamos alguns excertos.
A classe média ... apresenta um quadro triste onde dominam a exploração
mútua, a passividade e a ausência de padrões de moralidade. Essa classe parece
ser indiferente à grande tragédia, como acontecimento nacional, e nenhuma
consciência de culpa ou revolta apresenta. O Estado fascista, parece,
anulou-lhe o senso de responsabilidade no que diz respeito à coisa pública.
A grande massa do povo – conservada em estado de semi-ignorância e mantida
em estado de permanente embriaguez pela técnica fascista – essa não aceitou de
nenhuma maneira a ideia de derrota. Afasta de todos os modos, de seus olhos, o
espantalho da catástrofe, e em meio ao delírio da crise moral se entrega a toda
ordem de sofismas e símbolos novos.
A elite alta cada vez mais passiva no seu isolacionismo – o fascismo a tinha
adormecido num sonho de segurança; a classe média completamente corrompida e
sem senso de interesse coletivo – o fascismo alheou-a dos problemas superiores
do país; a massa do povo, completamente ignorante em matéria política,
extenuante de paixão, incapacitada para um movimento no sentido coletivo.
Em relação ao Brasil, seguem observações e lamentos sobre fatos que, na
perspectiva de hoje, podem ter sofrido modificações, mas revelam realidades
históricas que ajudam a explicar o presente.
Evidentemente, a quebra do poder feudal no Nordeste é um passo adiante. É
menos importante acelerar o desenvolvimento que debilitar esse poder, se bem
que as duas coisas são inseparáveis em nossa estratégia. O fim último terá que
ser liberar o homem do campo, despertá-lo para a vida. Ele representa três
quartas partes da população da região e nove décimos da miséria. Seu
comportamento ainda é infra-humano, muitas vezes bem perto da animalidade.
Uma geração, a minha, perdeu a batalha. Quiçá eu me equivoque, exagere a
minha visão interior da realidade. Toda uma geração viveu, lutou, iludiu-se,
alimentando-se da ideia de que o Brasil podia ser algo diferente disso que vi.
(…) Implantou-se um sistema de poder que é essencialmente uma aliança do grande
capital, sediado em São Paulo e com fortes vinculações externas, com as
chamadas Forças Armadas, mistura de burocracia, partido político e sistema de
repressão.
Que quadro tão melancólico é o que nos apresenta este país. A situação
econômico-financeira é extremamente grave, mas o governo não faz outra coisa
senão enganar o povo. E também enganar os empresários, aparentemente desejosos
de se deixar enganar, ou pelo menos temerosos de ver a realidade.
A classe política está desgastada, deteriorada e demasiado ansiosa para
ocupar espaço. É necessário que surja uma nova geração, que possa perceber a
realidade com outros olhos. Quanto tempo demorará isso? Que contribuição posso
dar para o advento dessa nova geração? Durante os últimos vinte anos estive
preocupado, quase exclusivamente, em desacreditar esse monstrengo que foi o
projeto de “modernização” pelo caminho autoritário. Posso estar satisfeito,
pois ganhamos a luta. (…) De toda forma, estamos apenas no início de uma fase
histórica que não se definirá enquanto não surja uma nova geração infensa a
essa impostura que é a imagem do Brasil criada pelo autoritarismo e
introjetada, ainda que inconscientemente, por grande parte dessa classe média.
No
dia 7 de abril de 1964, poucos dias depois do golpe militar que derrubou o presidente
João Goulart, o sociólogo Francisco de Oliveira foi preso ao sair da casa de
Celso Furtado, então presidente da Sudene. Ficou preso durante três meses.
Ainda na década de 60, escreveu uma obra em homenagem a seu amigo e
mestre: A navegação venturosa: ensaios sobre Celso Furtado. Na
apresentação do livro, criticando o patrimonialismo brasileiro, o autor diz que
Furtado é um cavaleiro da razão: “o cavaleiro da razão é um Quixote
que, do alto de sua loucura, combate incansavelmente os moinhos satânicos do
capitalismo predador e de suas classes-abutres”.
Em
que pese sua admiração pelo mestre Celso Furtado, Chico de Oliveira trilhou um
caminho próprio. Sua conhecida tese na 'Crítica à razão dualista' dizia que o
padrão primitivo da agricultura brasileira da época não era vestígio do
passado, mas parte funcional do desenvolvimento moderno do país, uma vez que
contribuía para o baixo custo da mão de obra em que se apoiava a acumulação
capitalista no Brasil. Para Furtado, a sobrevivência de uma “estrutura
pré-capitalista” ligado à “economia de subsistência” obstrui o crescimento
industrial, é um resquício colonial, e é condição que deve ser superada. Já
Oliveira entende que a questão agrária “atrasada” tem papel importante para
contribuir com a acumulação urbano-industrial.
Nos tempos que correm, de desindustrialização programada, de persistência
no modelo extrativista agroexportador de produtos primários sem agregação de
valor, vale lembrar a contribuição desses dois gigantes do pensamento social
brasileiro, profundamente comprometidos com o desenvolvimento econômico
autônomo do Brasil.
O atual Governo brasileiro é um governo neofascista que ataca, para destruir,
valores fundamentais previstos na Constituição: o bem-estar social, direitos
humanos, educação, saúde, pesquisa científica, cultura, meio ambiente, política
externa independente etc. O modelo neoliberal imposto provocou, em todo o
mundo, baixo crescimento, grande instabilidade financeira, e forte aumento das
desigualdades. Por isso, o nacionalismo de direita, nos EUA, Reino Unido,
Polônia e Hungria, se opõe ao neoliberalismo e à sua defesa do projeto de
globalização econômica.
Já no Brasil, temos o que o Professor Bresser Pereira chamou de “estranho
casamento” entre um nacionalista de extrema direita e o neoliberalismo. A elite
e as altas camadas da classe média apoiam o neoliberalismo, enquanto as baixas
camadas da classe média apoiam o nacionalismo de direita. Um casamento que pode
ou não durar muito, mas em ambos os casos inexiste a consciência da necessidade
de um projeto nacional de desenvolvimento para o Brasil, objetivo a que se
dedicou Celso Furtado em toda sua vida.