Em tempos de
bestialidades contra as mulheres a revista Teoria e Debate publica artigo de Érika
Kokay no qual defende que a cultura do estupro não é mero assunto de polícia e para
combatê-la é necessário envolver toda a sociedade.
Por Érika Kokay
A cada dois
minutos uma mulher é vítima de estupro no Brasil, segundo dado do Fórum
Brasileiro de Segurança Pública. O chocante dado foi praticamente ignorado até
recentemente, quando dois casos de estupros coletivos, um no Piauí e outro no
Rio de Janeiro, mereceram atenção e repúdio de brasileiros e estrangeiros.
Casos extremos, que romperam o tradicional silêncio sobre a violação de
mulheres em nosso território, em grande medida devido ao fato de um dos crimes
ter sido filmado e divulgado em redes sociais pelos próprios autores, que se
vangloriavam da barbárie cometida por trinta homens contra uma menina de 16
anos, desacordada, em uma favela carioca.
Tais
episódios desnudaram a abjeta cultura do estupro no Brasil, a mais latente
decorrência do patriarcalismo e conservadorismo que moldaram esse país. Sob
esse termo, reúne-se um conjunto de práticas sociais, sendo as principais a
naturalização do estupro e outras violências sexuais, a
desqualificação/difamação das vítimas e a proteção aos agressores. Também
integram a cultura do estupro comportamentos masculinos considerados menos
graves como cantadas, passadas de mão, beijos forçados, “encoxadas” em
transportes lotados, e a consequente agressão às mulheres que têm a ousadia de
reagir aos abusos.
Tanto esse
conjunto de ataques quanto músicas sexistas, publicidade e “obras artísticas”
que coisificam o corpo feminino, a desconstrução das narrativas e do
protagonismo das mulheres, a discriminação e as diversas formas de violência
contra as mulheres são situações frequentes em nosso país, aceitas e até
celebradas em alguns casos: vide o vulgar dito popular “segure sua cabra, que
meu bode está solto”, ou a apresentação, por pais orgulhosos, de seus filhos
homens como “pegadores”.
Para as
mulheres a situação é bem diferente. Desde a mais tenra idade, somos orientadas
a sentar e nos comportar de determinada maneira, não falar palavrão, não usar
roupas decotadas ou curtas, não ter muitos namorados para evitar má fama. Como
bem observado pela pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Mulheres
da Universidade de Brasília (UnB), Lourdes Bandeira, no imaginário coletivo as
vítimas de estupro são mulheres promíscuas, de moral duvidosa, que foram
violadas por monstros sem controle de seus instintos única e exclusivamente
devido ao seu (mau) comportamento e vestimentas insinuantes.
Quanto
engano. Toda mulher, desde o berço, é uma vítima em potencial. Estudos
demonstram que entre 70% e 80% dos casos de violência sexual registrados no
Brasil ocorrem dentro de casa; 88% das vítimas são mulheres, sendo mais de 70%
do total de vítimas ainda crianças e adolescentes (a cada duas horas uma menina
menor de 10 anos é estuprada). A maior parte dos crimes é cometida por
parentes, companheiros e amigos próximos das vítimas – o que explica o alto
percentual de ataques dentro dos lares brasileiros. São homens comuns, frutos e
sementes de uma sociedade que tolera e naturaliza a violência contra as
mulheres.
A vergonha,
o trauma e o medo – aliados à falta de preparo das equipes do sistema de
segurança, que revitimizam essas mulheres durante o atendimento – também se
revelam em números. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública,
apenas 13% das vítimas registram o crime. Para o Instituto de Pesquisas
Econômicas Aplicadas (Ipea), o percentual de registros é ainda menor, 10%.
Portanto, a estimativa é de 500 mil estupros por ano no Brasil contra os cerca
de 50 mil casos registrados anualmente.
Esse
altíssimo índice subjacente não nos surpreende. Geralmente, a denúncia gera
mais questionamentos sobre a vítima do que sobre o agressor. Não bastando a
violação sexual, a condenação moral que recai sobre as vítimas de estupro e a
constante tentativa de atenuar o comportamento dos agressores nos dão a clareza
de que tão responsável por esses crimes quanto os autores é a nossa sociedade,
machista, adultocêntrica e patriarcal – uma sociedade que considera como
objetos os corpos de meninas e mulheres; que naturaliza (e até premia) o
comportamento de seus filhos como predadores sexuais, como “pegadores” que
desrespeitam o corpo feminino, subjugando-o e ignorando suas súplicas e
negativas.
A cultura do
estupro, além de negar o corpo, os desejos e o direito de escolha das mulheres,
alimenta a ideia de que os homens não são responsáveis por suas atitudes
abusivas e violentas e de que cabe às mulheres a adoção de um tipo de
comportamento moral que não as coloquem em risco. Trata-se, portanto, de uma
aberração, que responsabiliza as vítimas, e não os agressores, pela violência
sofrida, condenando-as à dor, à discriminação e ao silêncio.
A existência
da cultura do estupro ficou nítida nas falas de um representante da bancada
religiosa e fundamentalista, durante debate sobre o tema realizado na Comissão
de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal, quando ele, além de negar a
existência da cultura do estupro em nosso país, disse textualmente: “Sempre
ensinei às minhas mulheres que deem respeito para que sejam respeitadas”. Uma
fala que expõe a herança patriarcal de nossa sociedade, que inclui mulheres e
crianças no rol das “propriedades” de um homem, e que reafirma a obrigação das
mulheres adotarem determinado comportamento a fim de não despertarem a
violência masculina. Assim, em vez de provar a inexistência da cultura do
estupro, como pretendia, esse senhor a reafirmou de forma peremptória.
Mais do que
investigar os casos de estupro, dando voz às vítimas e acolhendo-as, precisamos
tratar esse tema de forma integrada, envolvendo o conjunto das políticas
públicas. O combate à cultura do estupro não pode ficar restrito à política de
segurança, que só age quando o crime já foi cometido, mas deve envolver as
questões de gênero de forma transversal também nas áreas de educação, de
cultura, de saúde, de assistência, numa verdadeira e eficaz estratégia de
prevenção e enfrentamento à violência sexual em nosso país.
Nesse
sentido, precisamos lamentar o retrocesso em marcha no Brasil, com a ruptura
democrática ameaçando todos os direitos, e muito especialmente os das parcelas
mais vulnerabilizadas de nossa sociedade. O país que construiu a terceira
melhor legislação do mundo de enfrentamento à violência doméstica, a Lei Maria
da Penha, e que em 2015 sancionou a Lei do Feminicídio, incluindo no rol de
crimes hediondos os casos de assassinatos de mulheres em decorrência de seu
gênero, poderia – e deveria – ser exemplo mundial no combate à cultura do
estupro. No entanto, a gestão interina e golpista de Michel Temer à frente do
governo federal aposta no desmonte da estrutura pública voltada às mulheres que
foi construída com muita dor, mas também com muita esperança, ao longo dos
últimos 13 anos.
Isso se deu,
primeiramente, com a exclusão das mulheres dos principais postos de poder da
República. Ato contínuo, houve o rebaixamento do Ministério das Mulheres, da
Igualdade Racial e dos Direitos Humanos ao status de Secretaria de Política
para as Mulheres, e sua anexação ao Ministério da Justiça: fato que nos leva de
volta aos anos anteriores às gestões de Lula e Dilma, quando o enfrentamento da
violência doméstica não passava de caso de polícia.
Não
bastasse, foi nomeada como titular dessa secretaria a ex-deputada federal
evangélica Fátima Pelaes, que presidiu a Frente Parlamentar da Família e Apoio
à Vida na Câmara Federal. Pelaes já se manifestou reiteradas vezes contra a
descriminalização do aborto, sendo contrária, inclusive, à interrupção da
gravidez em caso de estupro, como previsto na legislação brasileira desde a
década de 1980. Tão grave quanto o desrespeito às leis é o risco que Pelaes
representa para as conquistas femininas ao romper com a laicidade do Estado,
por seguir preceitos bíblicos e não a Constituição.
Como
resposta ao hediondo caso do estupro coletivo no Rio de Janeiro, os golpistas
anunciaram a criação, na Polícia Federal, de um núcleo de enfrentamento à
violência de gênero. Uma resposta que já nasce fadada ao fracasso, pois trata a
questão da violência contra a mulher como um problema individual do agressor,
como uma ação de delinquentes, o que não contribui para avançarmos no sentido
de livrar nossa sociedade dessa cultura, que não é só de estupro, mas também
LGBTfóbica e racista.
Em nenhum
momento, Temer e seu ministro da Justiça apresentaram estratégias de combate à
cultura do estupro, à questão da desigualdade entre homens e mulheres, ao
machismo, à importância de tratar a perspectiva de gênero como transversal à
execução de todas as políticas públicas de Estado. Ao contrário: nesse momento,
vozes sexistas, machistas e fascistas, contidas durante anos pelo peso da
democracia, vêm à tona com força total, como no rompimento de diques,
descortinando o caráter misógino de um golpe maquinado com os setores mais
fundamentalistas de nossa sociedade. Setores esses que atacam diuturnamente a
perspectiva de empoderamento feminino, de autonomia das mulheres.
Combater a
cultura do estupro não é questão menor, tampouco mero assunto de polícia.
Combater a cultura do estupro, envolvendo todos os atores de nossa sociedade,
dando voz e perspectiva de futuro às mulheres sobreviventes, é romper com um
dos mais perniciosos mecanismos de opressão e de dominação patriarcal. Não nos
calaremos!
* Erika
Kokay é bancária e psicóloga.
Deputada federal pelo PT-DF, em segundo mandato,
integra a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal, bem como a
Comissão Parlamentar Mista de Enfrentamento à Violência contra a Mulher