Por Carlos Coimbra no GGN
Imagem: LIGO
O presente assume forma de retrospectiva de feitos
científicos. Com anotações e informes sobre os investimentos em Ciência durante
o governo de sua majestade Sugarvos-Ei I.
Começando de trás para frente:
Dezembro de 2017:
Na Mongólia, foi descoberto o fóssil de um dinossauro
que aparentemente vivia tanto na água quanto na terra (Cau et al,
2017, publicado na Nature). Foi usada a técnica da microtomografia síncrotron.
Isso aparentemente melhorou nosso entendimento de como as aves evoluíram dos
dinossauros.
Ao mesmo tempo, os habitantes de Veracrux, hoje
reintitulada Draculópolis, descobriram que os atuais responsáveis pela política
de ciências de seu país, desde maio de 2016, são fósseis pré-históricos que
nada entendem de ciência. A era Jurássica, cujo término ocorreu há milhões de
anos, reencarnou em algo tão ruim quanto. É a era Mesoclítica, de afamados
aristocratas golpistas, ignaros, voluptuosos, comandada por sua majestade
Sugarvos-Ei I, com o apoio de seus vizires Maiadesnuda II, Carminaburana I e
Euíndio sem número. O Ministério da Ciência e Comunicações [sic] é
presidido por um descontrolado patriarca paleolítico e o petróleo do país já
está prometido às aventureiras corporações de além-mar.
Novembro de 2017:
Um novo estudo feito por uma equipe da Universidade de
Stanford aponta que o aquecimento global está alterando o mecanismo de formação
das nuvens, o que impacta sobre o papel regulador das mesmas, amplificando
consequentemente o aquecimento da atmosfera (Brown & Caldeira, 2017,
publicado na Nature).
Enquanto isso, nuvens escuras e tempestades calamitosas
formam-se sobre as universidades públicas de Veracrux. Ali se encontram os
principais centros de pesquisa científica, ensino e extensão do país. A caça às
bruxas lembra a Inquisição Espanhola. Reitores são conduzidos coercitivamente
sob alegações duvidosas. Um deles, humilhado e execrado publicamente por crimes
que não cometeu, termina fatidicamente por se suicidar. O obscurantismo
vampiresco leva às ruas gritos de “queimem as bruxas”. O braço direito de sua
majestade Sugarvos-Ei é um movimento de jovens sem rumo que se autointitula
“Ilustrado”, mas não passa de paródia mal escrita dos antigos camicie
nere seguidores do fascio.
Outubro de 2017:
Na arqueologia, um feito grandioso, descoberto a partir
de tecnologia surpreendente, baseada no bombeamento de múons, levou um grupo
internacional de pesquisadores franceses e japoneses à descoberta de uma câmara
secreta na pirâmide de Quéops, a maior das pirâmides do Egito (Morishima et
al, 2017, publicado na Nature).
Enquanto isso, neste mesmo período, cientistas de
Veracrux foram obrigados a escrever um manifesto internacional de S.O.S., que,
em palavras resumidas, revela as torpes políticas de investimento em Ciência da
era Mesoclítica. Além disso, um grande abaixo-assinado mundial liderado por
diversos ganhadores do prêmio Nobel reivindica a volta dos investimentos na
Ciência de Veracrux. Infelizmente, Sugarvos-Ei tem ouvidos moucos. Na
contramão, sua majestade decide gastar recursos para se sustentar no poder e
compra o apoio de boa parte do Grande Conselho. Todos de Veracrux, mesmo que
intuitivamente, sabem que o Grande Conselho, à época do vizir Guayamun, deu um
golpe institucional que elevou Sugarvos-Ei ao trono. Hoje, o investimento em
Ciência é terreno assombrado por múmias. (Em tempo: os patéticos espiões de Sir
Atchingoyer toleram cada vez menos menções a esse antigo nome Veracrux. Segundo
a lei é Draculópolis, “que seja escrito e que se cumpra”, disse sua majestade
Sugarvos-Ei, completando: “tem que manter isso aí!”.)
Setembro de 2017:
A
epopeia de descobertas relacionadas às ondas gravitacionais continuou. 2017
será lembrado como um ano chave para a astronomia: três observatórios de ondas
gravitacionais, dois nos EUA e um na Itália, detectaram ao mesmo tempo a
assinatura da fusão de duas estrelas de nêutrons. Outros telescópios no ótico,
em raios-X, em rádio e em gama observaram a contraparte do mesmo sinal em ondas
eletromagnéticas. Feito inédito (Abbott et al, 2017, publicado na
Physical Review Letters). As estrelas se chocaram em uma região do espaço a
cerca de 130 milhões de anos-luz. A observação também apontou para uma
descoberta surpreendente: boa parte dos metais pesados do universo – ouro, platina,
urânio – foram formados durante o processo de colisão de estrelas de nêutrons.
A meticulosidade de corajosos jornalistas
investigativos leva a crer que representantes pessoais de sua majestade
Sugarvos-Ei já planejam, não se sabe como, recolher o ouro produzido na
distante colisão. O agente cujo codinome é “Boca de Jacaré” deverá repassar os
valores à cúpula de Draculópolis por meio de malas escondidas secretamente em
um quarto de apartamento.
Na questão das ondas gravitacionais,
Veracrux teve representação ativa nas últimas descobertas. O país tem
excelentes cientistas. Muitos deles participam de grandes colaborações
internacionais. Estas, como o próprio nome diz, funcionam pela força laboral
colaborativa de muitos pesquisadores, patrocinados por agências de diversas
partes do mundo. Nesse caso, infelizmente, uma pesquisa realizada por analistas
internacionais aponta que governos como o de Draculópolis relegaram o
investimento em Ciência e Tecnologia esperando que a captação de recursos
provindos de agências de fora do país seja suficiente para desenvolver as
pesquisas dos cientistas locais. Como se vê, a falta de visão é crônica. Dizem
que muito disso ocorre porque o patriarca descontrolado do ministério não é
cientista e nem sabe o que está fazendo ali.
Entre Janeiro e Agosto de 2017:
Como resumo final desta pequena retrospectiva, muitas
descobertas ocorreram nesse período que varre boa parte do primeiro semestre de
2017. Por exemplo, a descoberta de um método inovador para incubar bezerros
prematuros com alto risco de morte; os sistemas solares TRAPPIST-1 e LHS 1140
que contêm planetas com potencial existência de vida; a descoberta de que a
espécie Homo Sapiens existe há mais tempo do que antes
estimado; ou a invenção de um sistema capaz de captar água do ar de locais
muito secos, com umidade relativa tão baixa quanto 20%.
Enquanto isso, o orçamento do Ministério da Ciência,
Tecnologia, Inovações (e Comunicações [sic]), de Draculópolis, reduziu o
seu orçamento de 12 bilhões (em 2014) para 3 bilhões (em 2017). Atualmente, o
investimento em Ciência no país governado por Sugarvos-Ei é de mero 1% do PIB.
Por comparação, em países como Coreia do Sul o investimento é de 4%, no Japão
3,5% e na Alemanha 3%.
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Há motivos de sobra para que os habitantes de
Draculópolis (antiga Veracrux) se preocupem de fato. Sem investimentos sólidos
não há pesquisa. Sem pesquisa, não há o desenvolvimento de sementes, alimentos,
a extensão da academia para a comunidade, o aperfeiçoamento do ensino de ciências
básicas, nem uma sociedade equipada com tecnologia interconectada. Os apelos da
comunidade científica continuarão. Cérebros fogem do país, o obscurantismo
começa a emplacar. O povo do país da Vera Cruz é otimista e sabe que tudo pode
mudar, com seu empenho, com sua luta e com a sua sabedoria ancestral. Todo o
povo já sabe, há muito, que a cúpula de sua majestade e seus vizires, e as
corporações que sustentam esse reinado, fazem parte de um grande conglomerado
farsante e golpista.
No entanto, apesar da tímida esperança de povo tão
querido, o caso entre a Ciência e o ano de 2018 não é muito promissor. Teto de
gastos por 20 anos, cortes na carne, desculpas sem sentido empurrarão
cientistas para situações ainda piores.
O que fazer? As soluções passam por fugir às montanhas
ou então sair às ruas e romper com a torpeza desta era Mesoclítica, o que é
mais digno de um filho que não foge à luta. Há que se precaver: o sangue que
corre nas veias de sua majestade Sugarvos-Ei I é repleto de golpes comprados
com o mesmo dinheiro, dinheiro do povo, que deveria sustentar Ciência, Educação
e Saúde
Que o povo decida e que se cumpra.
Carlos H. Coimbra (twitter:
@carloscoimbra9) é professor da Universidade Federal do Paraná e cientista da
área da astrofísica e cosmologia. Gosta também de dar pitacos em áreas como
meio ambiente, aproveitamento de energia e cultura em geral.