Proposto por Flávio
Bolsonaro (PSL-RJ), o texto facilita
especulação imobiliária e torna quase impossível a desapropriação de imóveis
especulação imobiliária e torna quase impossível a desapropriação de imóveis
Por Rodrigo Gomes
Da RBA
Da RBA
Tramita no Senado Federal, com apoio declarado de 27 senadores, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 80/2019, de autoria do senador Flávio Bolsonaro (PSL/RJ), que altera as regras de cumprimento da função social da propriedade. Na prática, o texto facilita especulação imobiliária – tornando o abandono de imóveis algo regular, por exemplo – e torna quase impossível a desapropriação de imóveis, ao estabelecer a necessidade de aprovação do poder legislativo. Para a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), o projeto é inconstitucional. Movimentos sociais veem ataque contra lutas por moradia e reforma agrária.
O texto altera os artigos 182 e 186 da Constituição Federal, que tratam das
propriedades urbanas e rurais, respectivamente. Segundo a proposta de Flávio
Bolsonaro (PSL-RJ), a função social da propriedade estará cumprida quando o
imóvel atender “ao menos uma das seguintes exigências…”. Atualmente, a
Constituição exige o cumprimento de quatro requisitos: parcelamento ou
edificação adequados; aproveitamento compatível com sua finalidade; e
preservação do meio ambiente ou do patrimônio histórico, artístico, cultural ou
paisagístico. As exigências não são alteradas.
Além disso, a PEC condiciona a declaração de
descumprimento da função social pelo poder executivo – prefeitura, governos
estaduais ou federal – a uma autorização prévia do Poder Legislativo, ou por
decisão judicial. E define que a desapropriação por descumprimento da função
social terá de ser paga em valor de mercado. Na justificativa, o autor defende
“diminuir a discricionariedade do poder público na avaliação de desapropriação
da propriedade privada, tendo em vista que é um bem sagrado e deve ser
protegida de injustiças”.
Já as regras de punição para proprietários que não
cumpram a função social da propriedade estão mantidas na PEC 80. Sendo elas:
parcelamento ou edificação compulsórios; imposto sobre a propriedade predial e
territorial urbana progressivo no tempo; e desapropriação com pagamento
mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado
Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e
sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.
O professor Livre-Docente da Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da USP, João Sette Whitaker, ressaltou que a função social não é uma
intervenção no direito de uso do proprietário. “Um prédio em uma área
urbanizada ele tem infraestrutura urbana – acesso a água, esgoto, ônibus na
porta, coleta de lixo – que tem custos sociais que são caros para o Estado e a
sociedade e precisam ter uso. A legislação atual é bastante liberal, no sentido
que se você fizer um hotel cinco estrelas você está cumprindo a função social.
Vai gerar emprego, vai ter atividade econômica. Não é o sentido de ser para os
mais pobres”, explicou.
Para Whitaker, a PEC reduz muito as obrigações do
proprietário e abre argumentos jurídicos para manter intocados imóveis que
estão abandonados à espera de valorização imobiliária. “O texto abre uma série
de possibilidade de argumentos jurídicos para deixar imóveis vazios sem ser
incomodado pelo poder público. Se o prédio for um hotel vazio e abandonado, vai
se poder dizer que o aproveitamento dele é compatível com a função social, mas
que o mercado não está permitindo o funcionamento”, disse.
O urbanista ressalta que a definição de desapropriação
por valor de mercado limita as aplicações de regras municipais, como, por
exemplo, a definição de valor venal para esses casos. E que torna inviável a
muitas cidades a efetivação desse processo. “E ao colocar também a
desapropriação por autorização legislativa, você emperra isso em um processo
político. Hoje já existe a necessidade de decisão judicial, que é um processo
de caráter técnico. É claramente a tentativa de defender os proprietários de
ser questionados pelo poder público ao deixar um imóvel vazio, abandonado”,
avaliou.
Para Raimundo Bonfim, coordenador da Central de
Movimentos Populares (CMP), as alterações seriam um golpe no combate à
especulação imobiliária e no desenvolvimento de políticas habitacionais. “A PEC
80 praticamente acaba com o conceito de função social da propriedade. Isso vai
impossibilitar a desapropriação de imóveis e as políticas de reforma agrária,
no campo, e habitação social, nas cidades. Isso vai agravar ainda mais a situação da população mais
pobre e o déficit habitacional no país”, afirmou.
O órgão do Ministério Público Federal (MPF) também
aponta que o texto da PEC 80 liquida com a autonomia dos municípios ao definir
os princípios do desenvolvimento urbano, expressos nos planos diretores, ao
definir na Constituição quais são as hipóteses em que uma propriedade deixa de
cumprir sua função social. “Há aqui a mais séria interferência na autonomia
municipal”, destaca PFDC.
A procuradoria destaca ainda que a Constituição Federal
não define a propriedade como algo sagrado ou intocável. “O instituto da
propriedade privada se submete a inúmeras conformações: deve atender à sua função
social (art. 5º); cede diante de territorialidades indígenas (art. 231); é
transferida, mediante desapropriação, às comunidades quilombolas (art. 68 do
ADCT e STF: ADI 3239); está sujeita a confisco quando nela forem localizadas
culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo
(art. 243); e tem que atender às exigências fundamentais de ordenação da cidade
expressas no plano diretor (art. 182)”.