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em destaque: Homenagem
da família da colunista a sua tia-avó, dona Nunu, a única remanescente da linha
de mulheres que por seis gerações criou a todos os filhos e netos sozinhas.
Por Eliana Alves Cruz no The Intercept_ Brasil
A FRASE do general
Mourão – candidato a vice-presidente na chapa de Jair Bolsonaro – caiu quadrada
nos ouvidos de uma parcela enorme da nação brasileira. Quando não pensou meia
vez para dizer que famílias pobres “sem pai e avô, mas com mãe e avó” são
“fábricas de desajustados” que fornecem mão de obra ao narcotráfico, o militar
feriu com gravidade a verdadeira família tradicional brasileira: a de mulheres
que criam filhos e netos sem a presença masculina. Para citar um exemplo
pessoal, meu pai foi criado pela mãe e a avó. Ambas também foram criadas
unicamente por suas mães e avós em locais muito carentes de tudo. Tenho seis gerações
de familiares que, a julgar pelo critério do general, forneceriam matéria prima
para o crime. Segundo dados do IBGE, na Pesquisa Nacional de Amostras por
Domicílios (PNAD), o número de mulheres que chefiam suas famílias sozinhas
saltou de nove milhões para 11,6 milhões em quinze anos. Ou seja: de 2001 a
2015, houve um aumento de 20%.
Tenho seis gerações de familiares que, a
julgar pelo critério do general, forneceriam matéria prima para o crime.
A polêmica da vez, como sempre, correu em memes pelas redes sociais e um deles
me chamou especialmente a atenção. Para atenuar o impacto negativo da fala do
candidato a vice na chapa que lidera as pesquisas, em um cenário já difícil
junto ao eleitorado feminino, associaram frase do general a uma entrevista do
ex-presidente americano Barack Obama ao jornal New York Times, dez anos atrás.
Durante sua campanha eleitoral de 2008, o então candidato afirmava que mais da
metade de todas as crianças negras vivem em lares monoparentais e que crianças
que crescem sem pai têm cinco vezes mais chances de viver na pobreza e cometer
crimes, nove vezes mais chances de abandonar as escolas e vinte vezes mais
chances de acabar na prisão. Vejamos.
Barack Obama foi um menino negro criado apenas pela
mãe, desta forma, jamais poderia dar o tom determinista que o militar
brasileiro deu quando Mourão afirma que “a partir do momento em que a família é
dissociada, surgem os problemas sociais. Atacam eminentemente nas áreas
carentes, onde não há pai e avô, mas sim mãe e avó. Por isso, é uma fábrica de
elementos desajustados que tendem a ingressar nessas narcoquadrilhas”. A
diferença básica está em ser ciente da sobrecarga feminina e fazer um
chamamento à responsabilidade dos homens na história toda, ao invés de associar
à criação das crianças exclusivamente por mulheres à suposta existência da tal
“fábrica de elementos desajustados”.
Considerando que as famílias nas comunidades mais
violentas da nação são negras, a crítica do candidato a vice recai em cheio no
colo das mulheres negras que são a maioria da população e que muitas vezes só
possuem isso mesmo para oferecer aos seus filhos: colo. Pelo que vemos, não
passou por um único minuto na cabeça do oficial culpar o acesso negado (durante
muito tempo por lei) desde o Brasil colônia à educação, à saúde, ao saneamento
básico e aos direitos mais primários de qualquer ser humano. Não passou por sua
mente culpar a ausência do Estado no cuidado aos seus cidadãos e a exclusão nas
oportunidades para justificar o surgimento de bandidos em série, mas ele não
hesitou em pôr nos ombros de quem já muito carrega, o fardo de ver sua prole no
beco sem saída.
O exposto acima ainda não tocou em outro ponto crucial:
o da jornada dupla ou tripla de trabalho, visto que, além de trabalhar, cuidar
da casa e dos filhos, a mulher muitas vezes ainda estuda. Não por acaso, os
maiores índices de escolaridade são dominados pelo público feminino em todos os
níveis. Ainda assim, a corrida fica ainda mais desigual na remuneração, pois em
pleno 2018 as mulheres ainda ganham menos do que os homens para exercer as
mesmas funções. Uma situação que é apoiada, aliás, pelo parceiro de chapa do
general na já famosa frase de que “mulher deve ganhar menos porque engravida”.
O racismo e a misoginia parecem ser a
principal doença crônica nacional.
Minha bisavó, Damiana da Silva Santos, faleceu com 104
anos. Ela nasceu no ano da abolição da escravidão, em 1888. Na próxima semana,
Damiana completaria 130 anos de nascimento. Ela foi abandonada pelo marido,
assim como também foi sua filha, Celina, e como havia sido sua mãe, Martha,
nascida da Lei do Ventre Livre, e sua bisavó, Anolina, que foi seguidamente
abusada pelo senhor. A mãe desta… bem, esta veio de África e, portanto,
sequestrada dos seus. Conto este breve histórico familiar para dizer que o
racismo e a misoginia parecem ser a principal doença crônica nacional. Um mal
que não tem hora para manifestar suas pústulas, no tecido roto de uma nação
dilacerada por um processo eleitoral, a meu ver, entre os mais cruéis da nossa
trajetória.
Uma frase proferida pela velha Damiana como mantra e
que carregamos como lema familiar é: quem tem o conhecimento, tem o poder.
Nossa turma de “desajustados” está estudando, trabalhando, criando e
produzindo. O narcotráfico vemos apenas pelo noticiário, pelas séries
televisivas e na fala dos generais candidatos a governar um país que, pelo
visto, não apenas desconhecem, mas principalmente depreciam.