quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

O fascismo à brasileira e o cavaleiro da razão

...o Professor Bresser Pereira chamou de “estranho casamento” entre um nacionalista de extrema direita e o neoliberalismo. A elite e as altas camadas da classe média apoiam o neoliberalismo, enquanto as baixas camadas da classe média apoiam o nacionalismo de direita. Um casamento que pode ou não durar muito, mas em ambos os casos inexiste a consciência da necessidade de um projeto nacional de desenvolvimento para o Brasil...Créditos da foto: (Arte/Carta Maior)

Por Liszt Vieira – Carta Maior

O que me preocupa é a deformação, a abjeção humana, provocadas pela organização social baseada na exploração econômica ou na dominação política de muitos por poucos.
Celso Furtado, New Haven, 01.09.64 in Diários Intermitentes


Na conhecida concepção de Max Weber, o Estado detém o uso legítimo da dominação e da força física em determinado território. Weber explica a dominação com base em três critérios: a dominação tradicional, baseada em costumes, a carismática, baseada no apelo de um grande líder, e a legal, baseada na lei. Já Marx explica o Estado como o instrumento executivo da classe dominante.


São conceitos muito úteis, mas não creio que são suficientes para explicar a Tripartição dos Poderes que ocorre em vários Estados brasileiros, principalmente o Rio de Janeiro. Por Tripartição não me refiro à clássica Separação dos Poderes em Executivo, Legislativo e Judiciário que continua existindo, mas não abrange a totalidade do Poder tal como é exercido.


Com todo o respeito a Montesquieu e Weber, a Tripartição de fato se dá entre o Poder Público (incluindo as três esferas), a Milícia e o Tráfico de Drogas. Todas essas fontes de poder usam a força física para controlar o território que dominam com as regras que impõem. Claro que não há legitimidade do ponto de vista legal, mas muitas vezes esse poder paralelo conta com o apoio das comunidades que controlam. Frequentemente, há sobreposição, funciona a regra do Estado e da milícia ou tráfico. Às vezes, o Estado inexiste e determinado território é “governado” pela milícia ou tráfico.

No caso das milícias, a semelhança com o Estado é maior, porque impõem o pagamento de taxas e impostos aos moradores das áreas onde dominam. Já os traficantes comportam-se em geral como comerciantes de mercadoria que, por ser ilegal, exige o uso da força. Muitas vezes, porém, impõem suas regras de comportamento e segurança na área que controlam.

Em ambos os casos, o Estado oficial está ausente. Em seu lugar, o Poder de controle do território, de impor regras de conduta e cobrar impostos foi apropriado pela Milícia ou pelo Tráfico. Às vezes, há duplicidade de poder quando o Estado se faz presente com escolas, postos de saúde, segurança etc. Em outros, a ausência do Estado é suprida pelo poder dos milicianos ou traficantes. Esse quadro é hoje sobredeterminado pela ação de um Estado autoritário que elimina direitos e caminha em direção a um modelo próprio, um “fascismo à brasileira”. Enquanto o fascismo italiano combateu a Máfia, o nosso fascismo, ainda cozinhando no forno, já demonstrou ter boas relações com a máfia dos milicianos e já fez muitas vezes acordos pecuniários com os traficantes. A intervenção militar na segurança pública do Rio de Janeiro em 2018 ignorou a milícia e só cuidou do tráfico. Já a Polícia está cansada de fazer “arreglos” com os traficantes.


A situação política no Brasil começa a apresentar elementos e configurações próximas aos regimes fascistas que dominaram a Itália e Alemanha a partir dos anos 30 do século passado até o final da 2ª. Guerra Mundial. Claro que o fascismo brasileiro terá características próprias e se encontra ainda em formação, enfrentando resistências em algumas instituições e na sociedade civil. Mas já é evidente que, capitaneado pelo Executivo, conta com o apoio de importantes setores do Judiciário e do Legislativo, como também de cerca de um quarto da população que apoia as medidas liberticidas e antissociais do governo Bolsonaro.


É muito interessante e instrutivo ler o pensamento e as observações de Celso Furtado a respeito do fascismo italiano no pós-guerra no livro Diários Intermitentes – 1937-2002, organizado por Rosa Freire D’Aguiar. Encontramos observações e análises que parecem terem sido feitas para o Brasil de hoje. Vejamos alguns excertos.


A classe média ... apresenta um quadro triste onde dominam a exploração mútua, a passividade e a ausência de padrões de moralidade. Essa classe parece ser indiferente à grande tragédia, como acontecimento nacional, e nenhuma consciência de culpa ou revolta apresenta. O Estado fascista, parece, anulou-lhe o senso de responsabilidade no que diz respeito à coisa pública.


A grande massa do povo – conservada em estado de semi-ignorância e mantida em estado de permanente embriaguez pela técnica fascista – essa não aceitou de nenhuma maneira a ideia de derrota. Afasta de todos os modos, de seus olhos, o espantalho da catástrofe, e em meio ao delírio da crise moral se entrega a toda ordem de sofismas e símbolos novos.

A elite alta cada vez mais passiva no seu isolacionismo – o fascismo a tinha adormecido num sonho de segurança; a classe média completamente corrompida e sem senso de interesse coletivo – o fascismo alheou-a dos problemas superiores do país; a massa do povo, completamente ignorante em matéria política, extenuante de paixão, incapacitada para um movimento no sentido coletivo
.


Em relação ao Brasil, seguem observações e lamentos sobre fatos que, na perspectiva de hoje, podem ter sofrido modificações, mas revelam realidades históricas que ajudam a explicar o presente.


Evidentemente, a quebra do poder feudal no Nordeste é um passo adiante. É menos importante acelerar o desenvolvimento que debilitar esse poder, se bem que as duas coisas são inseparáveis em nossa estratégia. O fim último terá que ser liberar o homem do campo, despertá-lo para a vida. Ele representa três quartas partes da população da região e nove décimos da miséria. Seu comportamento ainda é infra-humano, muitas vezes bem perto da animalidade.


Uma geração, a minha, perdeu a batalha. Quiçá eu me equivoque, exagere a minha visão interior da realidade. Toda uma geração viveu, lutou, iludiu-se, alimentando-se da ideia de que o Brasil podia ser algo diferente disso que vi. (…) Implantou-se um sistema de poder que é essencialmente uma aliança do grande capital, sediado em São Paulo e com fortes vinculações externas, com as chamadas Forças Armadas, mistura de burocracia, partido político e sistema de repressão.


Que quadro tão melancólico é o que nos apresenta este país. A situação econômico-financeira é extremamente grave, mas o governo não faz outra coisa senão enganar o povo. E também enganar os empresários, aparentemente desejosos de se deixar enganar, ou pelo menos temerosos de ver a realidade.

A classe política está desgastada, deteriorada e demasiado ansiosa para ocupar espaço. É necessário que surja uma nova geração, que possa perceber a realidade com outros olhos. Quanto tempo demorará isso? Que contribuição posso dar para o advento dessa nova geração? Durante os últimos vinte anos estive preocupado, quase exclusivamente, em desacreditar esse monstrengo que foi o projeto de “modernização” pelo caminho autoritário. Posso estar satisfeito, pois ganhamos a luta. (…) De toda forma, estamos apenas no início de uma fase histórica que não se definirá enquanto não surja uma nova geração infensa a essa impostura que é a imagem do Brasil criada pelo autoritarismo e introjetada, ainda que inconscientemente, por grande parte dessa classe média.


No dia 7 de abril de 1964, poucos dias depois do golpe militar que derrubou o presidente João Goulart, o sociólogo Francisco de Oliveira foi preso ao sair da casa de Celso Furtado, então presidente da Sudene. Ficou preso durante três meses. Ainda na década de 60, escreveu uma obra em homenagem a seu amigo e mestre: A navegação venturosa: ensaios sobre Celso Furtado. Na apresentação do livro, criticando o patrimonialismo brasileiro, o autor diz que Furtado é um cavaleiro da razão: “o cavaleiro da razão é um Quixote que, do alto de sua loucura, combate incansavelmente os moinhos satânicos do capitalismo predador e de suas classes-abutres”.


Em que pese sua admiração pelo mestre Celso Furtado, Chico de Oliveira trilhou um caminho próprio. Sua conhecida tese na 'Crítica à razão dualista' dizia que o padrão primitivo da agricultura brasileira da época não era vestígio do passado, mas parte funcional do desenvolvimento moderno do país, uma vez que contribuía para o baixo custo da mão de obra em que se apoiava a acumulação capitalista no Brasil. Para Furtado, a sobrevivência de uma “estrutura pré-capitalista” ligado à “economia de subsistência” obstrui o crescimento industrial, é um resquício colonial, e é condição que deve ser superada. Já Oliveira entende que a questão agrária “atrasada” tem papel importante para contribuir com a acumulação urbano-industrial.

 Nos tempos que correm, de desindustrialização programada, de persistência no modelo extrativista agroexportador de produtos primários sem agregação de valor, vale lembrar a contribuição desses dois gigantes do pensamento social brasileiro, profundamente comprometidos com o desenvolvimento econômico autônomo do Brasil.


O atual Governo brasileiro é um governo neofascista que ataca, para destruir, valores fundamentais previstos na Constituição: o bem-estar social, direitos humanos, educação, saúde, pesquisa científica, cultura, meio ambiente, política externa independente etc. O modelo neoliberal imposto provocou, em todo o mundo, baixo crescimento, grande instabilidade financeira, e forte aumento das desigualdades. Por isso, o nacionalismo de direita, nos EUA, Reino Unido, Polônia e Hungria, se opõe ao neoliberalismo e à sua defesa do projeto de globalização econômica.


Já no Brasil, temos o que o Professor Bresser Pereira chamou de “estranho casamento” entre um nacionalista de extrema direita e o neoliberalismo. A elite e as altas camadas da classe média apoiam o neoliberalismo, enquanto as baixas camadas da classe média apoiam o nacionalismo de direita. Um casamento que pode ou não durar muito, mas em ambos os casos inexiste a consciência da necessidade de um projeto nacional de desenvolvimento para o Brasil, objetivo a que se dedicou Celso Furtado em toda sua vida.

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