sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Retrospectiva científica 2017 e o obscurantismo da era Mesoclítica



Por Carlos Coimbra no GGN
Imagem: LIGO

O presente assume forma de retrospectiva de feitos científicos. Com anotações e informes sobre os investimentos em Ciência durante o governo de sua majestade Sugarvos-Ei I. 

Começando de trás para frente:

Dezembro de 2017:
Na Mongólia, foi descoberto o fóssil de um dinossauro que aparentemente vivia tanto na água quanto na terra (Cau et al, 2017, publicado na Nature). Foi usada a técnica da microtomografia síncrotron. Isso aparentemente melhorou nosso entendimento de como as aves evoluíram dos dinossauros.
Ao mesmo tempo, os habitantes de Veracrux, hoje reintitulada Draculópolis, descobriram que os atuais responsáveis pela política de ciências de seu país, desde maio de 2016, são fósseis pré-históricos que nada entendem de ciência. A era Jurássica, cujo término ocorreu há milhões de anos, reencarnou em algo tão ruim quanto. É a era Mesoclítica, de afamados aristocratas golpistas, ignaros, voluptuosos, comandada por sua majestade Sugarvos-Ei I, com o apoio de seus vizires Maiadesnuda II, Carminaburana I e Euíndio sem número. O Ministério da Ciência e Comunicações [sic] é presidido por um descontrolado patriarca paleolítico e o petróleo do país já está prometido às aventureiras corporações de além-mar.



Novembro de 2017:

Um novo estudo feito por uma equipe da Universidade de Stanford aponta que o aquecimento global está alterando o mecanismo de formação das nuvens, o que impacta sobre o papel regulador das mesmas, amplificando consequentemente o aquecimento da atmosfera (Brown & Caldeira, 2017, publicado na Nature).

Enquanto isso, nuvens escuras e tempestades calamitosas formam-se sobre as universidades públicas de Veracrux. Ali se encontram os principais centros de pesquisa científica, ensino e extensão do país. A caça às bruxas lembra a Inquisição Espanhola. Reitores são conduzidos coercitivamente sob alegações duvidosas. Um deles, humilhado e execrado publicamente por crimes que não cometeu, termina fatidicamente por se suicidar. O obscurantismo vampiresco leva às ruas gritos de “queimem as bruxas”. O braço direito de sua majestade Sugarvos-Ei é um movimento de jovens sem rumo que se autointitula “Ilustrado”, mas não passa de paródia mal escrita dos antigos camicie nere seguidores do fascio.

Outubro de 2017:

Na arqueologia, um feito grandioso, descoberto a partir de tecnologia surpreendente, baseada no bombeamento de múons, levou um grupo internacional de pesquisadores franceses e japoneses à descoberta de uma câmara secreta na pirâmide de Quéops, a maior das pirâmides do Egito (Morishima et al, 2017, publicado na Nature).

Enquanto isso, neste mesmo período, cientistas de Veracrux foram obrigados a escrever um manifesto internacional de S.O.S., que, em palavras resumidas, revela as torpes políticas de investimento em Ciência da era Mesoclítica. Além disso, um grande abaixo-assinado mundial liderado por diversos ganhadores do prêmio Nobel reivindica a volta dos investimentos na Ciência de Veracrux. Infelizmente, Sugarvos-Ei tem ouvidos moucos. Na contramão, sua majestade decide gastar recursos para se sustentar no poder e compra o apoio de boa parte do Grande Conselho. Todos de Veracrux, mesmo que intuitivamente, sabem que o Grande Conselho, à época do vizir Guayamun, deu um golpe institucional que elevou Sugarvos-Ei ao trono. Hoje, o investimento em Ciência é terreno assombrado por múmias. (Em tempo: os patéticos espiões de Sir Atchingoyer toleram cada vez menos menções a esse antigo nome Veracrux. Segundo a lei é Draculópolis, “que seja escrito e que se cumpra”, disse sua majestade Sugarvos-Ei, completando: “tem que manter isso aí!”.)

Setembro de 2017:

A epopeia de descobertas relacionadas às ondas gravitacionais continuou. 2017 será lembrado como um ano chave para a astronomia: três observatórios de ondas gravitacionais, dois nos EUA e um na Itália, detectaram ao mesmo tempo a assinatura da fusão de duas estrelas de nêutrons. Outros telescópios no ótico, em raios-X, em rádio e em gama observaram a contraparte do mesmo sinal em ondas eletromagnéticas. Feito inédito (Abbott et al, 2017, publicado na Physical Review Letters). As estrelas se chocaram em uma região do espaço a cerca de 130 milhões de anos-luz. A observação também apontou para uma descoberta surpreendente: boa parte dos metais pesados do universo – ouro, platina, urânio – foram formados durante o processo de colisão de estrelas de nêutrons.

A meticulosidade de corajosos jornalistas investigativos leva a crer que representantes pessoais de sua majestade Sugarvos-Ei já planejam, não se sabe como, recolher o ouro produzido na distante colisão. O agente cujo codinome é “Boca de Jacaré” deverá repassar os valores à cúpula de Draculópolis por meio de malas escondidas secretamente em um quarto de apartamento.

Na questão das ondas gravitacionais, Veracrux teve representação ativa nas últimas descobertas. O país tem excelentes cientistas. Muitos deles participam de grandes colaborações internacionais. Estas, como o próprio nome diz, funcionam pela força laboral colaborativa de muitos pesquisadores, patrocinados por agências de diversas partes do mundo. Nesse caso, infelizmente, uma pesquisa realizada por analistas internacionais aponta que governos como o de Draculópolis relegaram o investimento em Ciência e Tecnologia esperando que a captação de recursos provindos de agências de fora do país seja suficiente para desenvolver as pesquisas dos cientistas locais. Como se vê, a falta de visão é crônica. Dizem que muito disso ocorre porque o patriarca descontrolado do ministério não é cientista e nem sabe o que está fazendo ali.

Entre Janeiro e Agosto de 2017:

Como resumo final desta pequena retrospectiva, muitas descobertas ocorreram nesse período que varre boa parte do primeiro semestre de 2017. Por exemplo, a descoberta de um método inovador para incubar bezerros prematuros com alto risco de morte; os sistemas solares TRAPPIST-1 e LHS 1140 que contêm planetas com potencial existência de vida; a descoberta de que a espécie Homo Sapiens existe há mais tempo do que antes estimado; ou a invenção de um sistema capaz de captar água do ar de locais muito secos, com umidade relativa tão baixa quanto 20%.

Enquanto isso, o orçamento do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações (e Comunicações [sic]), de Draculópolis, reduziu o seu orçamento de 12 bilhões (em 2014) para 3 bilhões (em 2017). Atualmente, o investimento em Ciência no país governado por Sugarvos-Ei é de mero 1% do PIB. Por comparação, em países como Coreia do Sul o investimento é de 4%, no Japão 3,5% e na Alemanha 3%.

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Há motivos de sobra para que os habitantes de Draculópolis (antiga Veracrux) se preocupem de fato. Sem investimentos sólidos não há pesquisa. Sem pesquisa, não há o desenvolvimento de sementes, alimentos, a extensão da academia para a comunidade, o aperfeiçoamento do ensino de ciências básicas, nem uma sociedade equipada com tecnologia interconectada. Os apelos da comunidade científica continuarão. Cérebros fogem do país, o obscurantismo começa a emplacar. O povo do país da Vera Cruz é otimista e sabe que tudo pode mudar, com seu empenho, com sua luta e com a sua sabedoria ancestral. Todo o povo já sabe, há muito, que a cúpula de sua majestade e seus vizires, e as corporações que sustentam esse reinado, fazem parte de um grande conglomerado farsante e golpista.

No entanto, apesar da tímida esperança de povo tão querido, o caso entre a Ciência e o ano de 2018 não é muito promissor. Teto de gastos por 20 anos, cortes na carne, desculpas sem sentido empurrarão cientistas para situações ainda piores.

O que fazer? As soluções passam por fugir às montanhas ou então sair às ruas e romper com a torpeza desta era Mesoclítica, o que é mais digno de um filho que não foge à luta. Há que se precaver: o sangue que corre nas veias de sua majestade Sugarvos-Ei I é repleto de golpes comprados com o mesmo dinheiro, dinheiro do povo, que deveria sustentar Ciência, Educação e Saúde

Que o povo decida e que se cumpra.


Carlos H. Coimbra (twitter: @carloscoimbra9) é professor da Universidade Federal do Paraná e cientista da área da astrofísica e cosmologia. Gosta também de dar pitacos em áreas como meio ambiente, aproveitamento de energia e cultura em geral.

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