Por Urariano Mota
urarianoms@uol.com.br
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Neste 6 de março, o gênio de Gabriel García Márquez
completaria 90 anos. Na sua ótima biografia escrita por Gerald Martin, podemos
ler:
“Gabo se mostrava claramente angustiado. Depois que
conversamos sobre seu trabalho e planos por algum tempo, declarou que não tinha
certeza se voltaria a escrever. Então ele disse, quase melancólico: ‘Escrevi
bastante, não escrevi? As pessoas não podem ficar frustradas, e não podem
esperar mais nada de mim, não é?’
Estávamos sentados em imensas poltronas azuis, numa
saleta íntima do hotel, de onde se via o anel rodoviário do sul da Cidade do
México. Lá fora estava o século XXI, voando. Oito pistas de tráfego incessante.
Ele me olhou e disse:
– Sabe, algumas vezes fico deprimido.
– Como? Você, Gabo, depois de tudo que realizou? Não
acredito. Por quê?
Ele gesticulou para o mundo além da janela – a grande
artéria de tráfego intenso, a intensidade silenciosa de todas aquelas pessoas
comuns vivendo a vida num mundo que não era mais seu -, depois voltou o olhar
para mim e murmurou:
– Porque percebo que tudo isso está chegando ao fim”.
Não chegou ao fim. Jamais chegará. Para todos nós, a
obra de um criador é sempre um recomeço. Lembro que esse romance em nossa
juventude nos deu conforto, humor e um estado de graça para suportar o risco da
morte. Foi uma revelação.
As palavras, a frase e o modo de contar de García
Márquez nos ensinaram a ler, escrever e contar o mundo. Isso, é claro, já
havíamos visto, de modo fundamental, em Cervantes, no Padre Vieira, em Machado
de Assis. Isso quer dizer, amigos: narrar, contar uma história, não é dizer,
não é o mesmo que falar. Narrar é retirar da realidade mesma, da própria
realidade a frase que encarna, que concretiza, que torna imorredoura a sombra,
que antes era vaga ou apenas entrevista. Narrar é dar forma ao que antes
mostrava apenas traços informes. Gabriel García Márquez se fez o Cervantes do
século XX, um criador absoluto. O cara que devolveu a autoestima dos
latino-americanos.
Em livros de entrevista, autobiográficos ou biográficos
lemos e conhecemos a trajetória da sua vida, e vemos e notamos e aprendemos e
apreendemos o escritor antes do sucesso absoluto em todos os continentes, antes
de ser o Maestro, o mestre Gabo. Gabriel García Márquez, antes de ser escritor,
enfim, era uma alma errante, uma alma perdida a vagar, sem rumo definido. Mas
com uma vontade louca de entender o mundo, com uma fome voraz de alimentos de
toda sorte, principalmente de literatura.
É exemplar, modelar, a forma com que ele faz tributo e
rende homenagens aos grandes que o precederam, inclusive aos grandes que só ele
conheceu, porque não ganharam fama. E de tal modo ele lhes reconhece excelência,
que parece nos dizer: “olhem, este sim era maior”. E também dos grandes que
alcançaram status de criador, como Juan Rulfo, por exemplo, o fecundo
romancista que o influenciou, mas não conheceu o boom literário como ele,
García Márquez.
Lembro que na pensão, em atividade clandestina, a sua
literatura era melhor que cinema, viajar ou beber cerveja. Em meu romance “A
longa duração juventude” escrevo:
“Nas mãos de Luiz do Carmo, as páginas de Cem Anos de
Solidão voavam, de voo mesmo, não só pela rapidez com que eram passadas, mas
com o bater de asas que pareciam se agitar no espaço do quarto da pensão, onde
as palavras eram pássaros. Então, se naquela imobilidade ele estava bem, todos
estávamos seguros. Enquanto os fascistas não vinham, Luiz do Carmo estava
defendido pelo romance de García Márquez”.
Bem compreendíamos. Na adesão de Gabriel García Márquz
ao socialismo havia um humanismo luminoso, aquele que narrou as pessoas do
povo, o seu lugar, a sua terra, o seu barro fundador, que se fez também nosso. Então
voltemos a seu livro máximo, Cem Anos de Solidão, que neste 2017 faz 50 anos de
luz. Nele vemos: “O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e
para nomeá-las se precisava apontar com o dedo”. Assim foi, assim é. Tudo enfim
que continua a ser tão recente, que ainda precisa receber nomes apontados com o
dedo.
*Diário de Pernambuco
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