A luta é pela
sobrevivência do coletivo social e não apenas para os que são pensados como os
mais úteis e aptos aos interesses e ao trabalho para o incansável e insone
capital. O que agora ocorre é mais um absurdo equívoco. Charge
de Flávio Luiz)
Por Antonio Helio Junqueira no GGN
Em seu pronunciamento em rede nacional de televisão, na
noite de ontem, o maníaco e aturdido mandatário do (des)governo de plantão
contraria medidas e recomendações adotadas por autoridades médicas,
sanitaristas e políticas de todo o globo e convoca a população a abandonar sua
quarentena e a retomar a normalidade da vida social, em pleno contexto da
pandemia do coronavírus.
Sua atitude insana e descompromissada com a saúde, o
bem-estar e o futuro do País imediatamente ganhou resposta nas panelas e
janelas de todo esse sofrido Brasil no uníssono grito de ”Fora, genocida! ”
Nessa sua mais recente investida, o portador da faixa
presidencial retoma o problemático conceito de grupo de risco, na tentativa de
circunscrever as medidas restritivas da circulação pública a apenas poucos
grupos de pessoas consideradas mais vulneráveis aos ataques letais do
coronavírus: idosos, gestantes e portadores de doenças pré-existentes. Todas as
demais, incluindo as crianças, são assim convocadas à retomada da normalidade
da vida social, nada tendo a temer, posto que imunes ou resistentes a qualquer
“gripezinha, ou resfriadinho”.
Lamentavelmente, esse conceito de grupo de risco
ressuscita uma visão muito parcial e extremamente falaciosa, no que diz
respeito à saúde coletiva. Nem é preciso ir muito longe para perceber os riscos
que tal ideário retoma. Basta analisarmos com serenidade e a distância temporal
que já nos é possível os fenômenos ocorridos no início da epidemia da AIDS/HIV,
nos anos 1980.
Naquele período, frente à emergência visceral e
ameaçadora da doença até então desconhecida, muito rapidamente consolidou-se a
vontade de circunscreve-la a determinados grupos sociais, o que, na medida do
possível, arrefecia a ansiedade coletiva e permitia a implementação de formas
de isolamento, especialmente através da invisibilização e do apagamento social
dos corpos doentes. O fato de os primeiros quadros sintomáticos terem se
revelado em grupos homossexuais masculinos e usuários de drogas injetáveis
forneceu os elementos necessários para que a doença fosse classificada como
“peste ou câncer gay”. Nesse contexto, o conceito então engendrado de grupo de
risco veio a contribuir decisivamente não apenas para aumentar a estigmatização
social já prevalecente sobre os indivíduos considerados “desviantes” em relação
às normas morais predominantes, mas também para confundir o entendimento dos
mecanismos da transmissão da doença, o que veio a contribuir decisivamente para
sua mais rápida propagação e generalização do contágio.
Assim, a ampla disseminação da doença e a indistinta
contaminação de heterossexuais, mulheres e crianças, que se seguiram pelos anos
1990, trouxeram a necessidade do abandono da operacionalidade funcional do
conceito anterior de grupo de risco e sua substituição pelo de comportamento de
risco.
Ainda assim, nesse novo contexto ideológico da
percepção social da doença, essa mudança não foi capaz de aportar subsídios
suficientes para o enfrentamento bem-sucedido da epidemia da AIDS. Isso porque
o conceito mantinha a condenação, o estigma e a exclusão dos indivíduos, sob o
pressuposto da possibilidade da imputação da individualização da culpa e do
julgamento moral das vítimas, acima das condições de existência e da
convivência coletiva. Não é difícil perceber, portanto, as formas e as astúcias
como o jogo do discurso hegemônico cria e recria a divisão social e aniquila a
empatia e a solidariedade necessárias ao enfrentamento de questões globais,
como as afetas à esfera da saúde coletiva. Nesse contexto, enraíza-se a ideia
de que a doença é –e sempre será – a
doença do Outro, o problema do Outro, daquele que não me atinge, por que dele
posso simplesmente me afastar.
Para superar esses dilemas, a ciência, a prática e a
práxis em saúde coletiva passaram a adotar o conceito de vulnerabilidade. Nele,
e a partir dele, os riscos passam a ser compartilhados por todos,
independentemente de gênero, idade, classe ou outros quaisquer marcadores
sociais. Diz respeito a todos os seres humanos, de todos os lugares, irmanados
pela globalização das relações e das conexões. Não somos grupos discrimináveis;
somos coletivos interdependentes e mutuamente interferentes. Dependemos, quiçá
mais do que nunca, da saúde e do bem-estar dos outros.
Nesse sentido, a ideia da vulnerabilidade em saúde
coletiva convoca práticas de prevenção social dos riscos comuns, a que todos,
indistintamente, estamos sujeitos. Envolve, simultânea e inseparavelmente,
ações e compromissos individuais, sociais e governamentais, em suas dimensões
de educação, informação segura, cuidados e assistência. Trata-se do único
caminho da construção confiável para assegurar o bem-estar social e garantir a
própria existência de um futuro para a humanidade.
Se apenas uma parte do coletivo se sentir intocável e
invulnerável, estaremos prontamente todos incapazes de contornar e superar as
condições impostas pelo risco social e coletivamente experimentado. É na ponte
do Eu para o Outro que reside a única saída possível para todos. Solidariedade,
empatia e cooperação são partes inextricáveis do caminho a ser trilhado nesses
momentos de medo, ansiedade e risco.
Nesse contexto, a insistência de alguns, especialmente
se dotados de poder de mando, em continuar operando as ideias e conceitos de
grupos de risco e de comportamento de risco, ao invés do de vulnerabilidade,
reacende as visões do preconceito e do estigma social e nos coloca a todos no
caminho da danação.
Pensar a vulnerabilidade como fenômeno coletivo tem
implicações políticas do mais alto significado e relevância, posto que exige
repensar valores e sentidos partilhados, formas de organização do trabalho e da
vida, contextos de solidariedade e empatia e modos de partilhar a construção do
futuro comum. Ou seja, tudo o que não interessa àqueles que visam, antes e
acima de tudo, a manutenção das relações de iniquidade, submissão e exploração
do Outro.
O discurso do risco coloniza nossos corpos,
subjugando-os às intervenções arbitrárias, política e economicamente
interessadas dos poderes do Estado e do capital. Tornamo-nos (os dos ditos
grupos de risco), portadores da ameaça ao conjunto dos sãos e inatingíveis.
A classificação dos sujeitos em grupos de risco,
instituindo a diferença entre uns e outros no interior do corpo social,
favorece e atende aos propósitos da culpabilização das minorias ou dos corpos
estigmatizados, em atenção às astúcias da biopolítica discriminatória, que tal
discurso arma e nutre. Ao receber a pecha da portabilidade do risco ao
coletivo, o sujeito estigmatizado é transposto do seu status de vítima para o
de ameaça, passando a alvo de toda ansiedade social. A socióloga Deborah
Lupton[2] é incisiva ao afirmar que o conceito de grupo de risco contribui para
a produção de determinadas racionalidades, estratégias e subjetividades, sendo
central na regulação de indivíduos, grupos sociais e instituições.
No triste momento que atravessa a nação, a narrativa
que se tenta construir é a de que as crianças e os jovens são inquebrantáveis
pelo coronavírus e que sua saúde é totalmente refratária aos reais riscos da
sua morbidade e eventual letalidade. Sem dúvida que corpos juvenis são mais
saudáveis e mais rapidamente autoreparadores. Isso faz parte do mistério da
vida e de toda sua beleza. Porém, tal fato não minimiza, em nada, o seu papel
transmissor e disseminador do vírus por todo o tecido social. Jovens estudam,
trabalham, comem, vivem e se divertem em conjunto com pessoas mais idosas,
sejam elas pais, avós, professores, instrutores, prestadores de serviços,
chefes e supervisores. É a cadeia lógica da vida e da existência, onde o
convívio entre gerações favorece e estimula a troca de saberes, fazeres, afetos
e esperanças.
Ainda que não sucumba diretamente à nocividade do
vírus, o jovem pode vir a ser o seu portador e o transmissor da sua letalidade
para outras pessoas, que pelas mais diversas condições pessoais ou sociais, se
encontre momentaneamente menos resistente ou debilitado. Todos e cada um de nós
pode vir a se encontrar nessa situação. Não somos ilhas; somos coletivos
inter-relacionados.
Ao contrapor equivocada e maliciosamente saúde e
economia, o mandatário procura confundir a opinião pública amedrontada e
ansiosa, como se houvesse, de fato, oportunidade para essa impossível escolha.
Pois, não há!
A luta é pela sobrevivência do coletivo social e não
apenas para os que são pensados como os mais úteis e aptos aos interesses e ao
trabalho para o incansável e insone capital. O que agora ocorre é mais um
absurdo equívoco.
Nunca será ocioso lembrar que, no Brasil, os indivíduos
com 65 anos ou mais já representam, segundo o IBGE, mais de 10% do total da
população, somando mais de 22 milhões de pessoas. São esses idosos que
respondem, com suas aposentadorias, pela maior ou pela única fonte de renda e
sustentação econômica de 5,7 milhões de lares brasileiros. Com o recente
agravamento da crise econômica e com a crescente precarização das relações
entre o capital e o trabalho, é o rendimento dos idosos aposentados que garante
a sobrevivência de mais de 12 milhões de pessoas. Além disso, mesmo aposentada,
grande parte dos idosos tem se mantido profissionalmente ativa, submetendo-se,
inclusive, a trabalhos e relações aviltantes para seguir contribuindo com a
sobrevivência não apenas de si próprios, mas de suas famílias, inclusive dos
membros mais jovens.
Sim! Os idosos tornaram-se os novos arrimos de família
no Brasil! Quem ousa, pois, pensá-los como improdutivos, dispensáveis, estorvos
para o andamento da carruagem econômica.
Sob todos e quaisquer aspectos, sejam eles sociais,
econômicos ou morais, é melhor pensar muito bem antes de condená-los ao
extermínio viral!
A saúde é o nosso maior bem. Cuidados e viva longa a
todes! Fiquemos bem uns com os outros e uns pelos outros.
[1] Doutor em Ciências da Comunicação (ECA/USP), com
pós-doutorado e mestrado em Comunicação e Práticas de Consumo (ESPM/SP).
Engenheiro Agrônomo (ESALQ/USP). Pós-graduado em Desenvolvimento Rural e
Abastecimento Alimentar Urbano (FAO/PNUD/CEPAL/IPARDES) e em Organização
Popular do Abastecimento Alimentar Urbano (FEA/USP). Pesquisador e consultor de
empresas em Inteligência de Mercado, Estudos do Consumo, Tendências de Mercado
e Marketing. Sócio-proprietário da Junqueira e Peetz Consultoria e Inteligência
de Mercado.
[2] LUPTON, Deborah (Ed.). Risk and sociocultural
theory: new directions and perspectives. Cambridge: University Press, 1999.
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