POR FÁBIO FABRINI, PAULO SALDAÑA, NATÁLIA CANCIAN,
BERNARDO CARAM E RANIER BRAGON - FOLHAPRESS
Na celebração dos 300 dias da gestão de Jair Bolsonaro
(PSL), o governo divulgou um balanço que apresenta, entre as medidas, ações
superdimensionadas, informações que divergem de dados divulgados por órgãos
oficiais e trechos com abordagem ideológica.
A cerimônia reuniu autoridades no Palácio do Planalto,
na terça-feira (5), para discurso de Bolsonaro e assinatura de projetos.
No evento, a Presidência distribuiu à imprensa um
documento intitulado “300 Dias Recuperando a Confiança”.
Logo na abertura do balanço, a equipe de Bolsonaro
afirma que “os escândalos de corrupção sumiram do Palácio do Planalto e dos
noticiários”.
Desde o início do governo, os aliados do presidente e
um de seus filhos, o senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), são alvo de
investigações sobre ilegalidades.
Em outubro, o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro
Antônio, foi denunciado à Justiça sob a acusação de caixa dois eleitoral,
apropriação indébita de recursos e associação criminosa.
A investigação do caso, revelado pela Folha de S.Paulo,
apontou ser ele o chefe de um esquema de candidaturas de laranjas no PSL,
partido de Bolsonaro. O presidente decidiu mantê-lo no cargo.
Em fevereiro, o secretário-geral da Presidência,
Gustavo Bebianno, foi demitido por envolvimento no mesmo escândalo.
Flávio foi apontado pelo Ministério Público do Rio de
Janeiro como possível envolvido em um esquema de “rachadinha”, desvio de parte
dos salários de servidores de seu gabinete na Assembleia Legislativa do Rio. A
investigação está suspensa por ordem do Supremo Tribunal Federal.
Na área ambiental, o levantamento sustenta ter havido
“redução das queimadas no Brasil entre janeiro e agosto”. O documento não
apresenta nenhum número.
Dados do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais), órgão federal que faz esse tipo de monitoramento, mostram o
contrário. Relatório do Programa Queimadas, mantido pelo instituto, diz que o
aumento no número de focos foi de 71% e é, “sem dúvida, expressivo”.
Para a diretora de Ciência do Ipam (Instituto de
Pesquisa Ambiental da Amazônia), Ane Alencar, a postura do governo na área
ambiental, ao questionar dados oficiais e denunciar uma suposta indústria de
multas, contribuiu para o problema. “Isso tudo leva o produtor e o grileiro a
achar que está liberado [para desmatar].”
O documento exalta também a “queda da criminalidade” no
primeiro semestre de 2019.
O combate a esses ilícitos, no entanto, é tarefa dos
estados, os quais assumem a responsabilidade pela segurança pública.
Questionado pela reportagem, o Ministério da Justiça
não informou quais são as fontes dos dados citados e por que os avanços são
atribuíveis à gestão federal.
A questão agrária foi incluída no trecho do balanço
sobre o combate ao crime. Segundo o governo, registrou-se uma ocupação de
terras no primeiro trimestre, contra 43 em 2018.
“O MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra]
está mais fraco graças à facilitação da posse de armas para pessoas de bem e
pelo fim das ‘ajudas’ do governo”, justifica o documento, sem apresentar dados
complementares a respeito.
O MST informou que houve cinco ocupações no primeiro
trimestre e que a redução dessas atividades se deve a outras pautas, como a
campanha contra a reforma da Previdência e o movimento Lula Livre.
Os 300 dias do governo na área da educação são
celebrados com um reforço no discurso ideológico e valorização de
transformações no setor que não ocorreram.
Há uma menção a uma suposta doutrinação de esquerda que
seria dominante na educação. O tema faz parte do discurso bolsonarista. “Por
anos, o futuro do Brasil foi criminosamente jogado na sarjeta das ideologias
revolucionárias”, diz o texto.
Questionado, o MEC (Ministério da Educação) não
respondeu sobre quais evidências fundamentam essas afirmações.
A pasta viveu neste período momentos de turbulência e
paralisia, com disputas, troca de ministro e escassez de recursos. Só a partir
do meio do ano o MEC inicia uma agenda de anúncios.
Apesar disso, o documento fala em “reestruturação do
sistema educacional”, o que não ocorreu. A prioridade no discurso do governo é
a educação básica, em detrimento do ensino superior. Os bloqueios de orçamento,
no entanto, atingiram ações que vão da creche à pós-graduação.
O texto ressalta o chamado Compromisso Nacional pela
Educação Básica, lançado em julho. As propostas, segundo o documento, teriam
sido “construídas com base no plano de governo”, o que também não se sustenta.
As ações são praticamente a retomada de programas já
existentes e cujos investimentos haviam sido esvaziados no primeiro semestre. A
alfabetização, prioridade dos primeiros 100 dias, nem chegou a ser citada nesse
compromisso de julho.
De novidade nesse programa, só o plano para expandir
com dinheiro federal colégios cívico-militares, que começa com 54 escolas no
próximo ano.
Quem lê o documento encontra que o governo realizou
“investimentos nas universidades, na ciência e na tecnologia”. Mas a realidade
foi de escassez de recursos para o ensino superior público, ataques à qualidade
das universidades (que tiveram recursos bloqueados em boa parte do ano) e
cortes de bolsas de pesquisa.
Só a Capes, órgão do MEC responsável pela
pós-graduação, teve 8% das bolsas cortadas. Isso equivalente a 7.590 benefícios
esvaziados.
Ações como o Enem digital e incentivo à educação
profissional são exaltadas no texto, mas por ora só são anúncios.
No caso da educação profissional, por exemplo, o
governo defende que o programa criará 1,5 milhão de matrículas até 2023, mas
todo esse volume dependerá do esforço dos estados.
De concreto, o MEC ressalta o investimento R$ 120
milhões para conectar à internet banda larga 6.500 escolas rurais ainda neste o
ano. O valor inclui também escolas urbanas. No total, a pasta espera atingir
32,4 mil escolas.
No trecho sobre ações sociais e de saúde, o discurso
ideológico ganha destaque. O documento aponta entre ações dos 300 dias a
“defesa da vida, da família, da fé”.
Divergências com governos anteriores em relação ao Mais
Médicos e questões indígenas também são citadas.
O documento comemora uma parceria da Embrapa com a
Funai para programas de treinamento voltados a essa população. “Chega de tratar
nossos irmãos como animais de zoológico”, aponta.
Já no caso do Mais Médicos, o texto dá destaque ao que
chama de “revisão” das regras do programa visando o “combate a diretrizes que
praticamente escravizavam os médicos cubanos”.
Cubanos, porém, não fazem mais parte do programa desde
novembro do último ano, quando o país caribenho declarou que romperia o
contrato por causa da declarações polêmicas de Bolsonaro sobre a qualificação
dos médicos.
Desde então, os médicos que permaneceram no Brasil
dizem enfrentar dificuldades financeiras. Em agosto, o governo lançou o
programa Médicos pelo Brasil, previsto para substituir o Mais Médicos, mas sem
ações para esse grupo.
O Ministério da Saúde diz que aguarda discussões no
Congresso sobre o tema.
O documento cita ainda redução de 38% de casos de
malária em comparação com ao de 2018, atribuindo esse resultado “a ações do
governo federal, estados, municípios e população”.
Especialistas, porém, dizem que a redução começou ainda
no último ano e que não é possível determinar um fator exato para a queda.
Na economia, o governo menciona a criação de vagas com
carteira assinada neste ano, mas omite o recorde de informalidade no país.
No dia 31, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística) anunciou que houve uma alta 2,9% no número de trabalhadores sem
carteira assinada no terceiro trimestre, atingindo 11,8 milhões de pessoas,
patamar mais alto da série histórica.
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