segunda-feira, 30 de abril de 2018

Em Copenhague, os anarquistas ditam a ordem

Na capital dinamarquesa, uma comunidade autônoma ocupa um antigo distrito militar há quase 50 anos e define suas próprias regras. A entrada da "cidade", hoje ponto turístico de sucesso.


por José Gabriel Navarro

Em Copenhague, entre as ruínas do muros de uma antiga base militar, ergue-se Christiania. Em um dos principais acessos, um grande aviso esclarece: “Quem ultrapassar as muralhas deixará a União Europeia para trás e entrará em outro território, uma nação à parte desligada das divisões geopolíticas tradicionais”

Desde os anos 1970, quando a base deixou de fazer sentido para o governo dinamarquês, a região é ocupada por anarquistas, na esteira de movimentos da contracultura que se espalharam pelo mundo em meados da década anterior.

“Muitos ainda enxergam Christiania como área rebelde e desregulada no coração da capital, onde a ilegalidade e o comércio de drogas prosperam”, afirma Chris Holmsted Larsen, professor da Universidade de Roskilde. “Mas eu, como a grande maioria, a entendo como algo singular, criativo e valioso no meio de uma sociedade altamente regulada e um tanto quanto entediante.”

Christiania autodeclarou-se cidade livre em 1971. Desde então, a convivência entre os moradores do enclave e os habitantes de Copenhague viveu altos e baixos, até se tornar mais pacífica a partir de 2007, quando foi assinado um acordo entre a zona anarquista e o governo, definindo termos para o pagamento de contas de luz e água e impostos, a coleta de lixo e o repasse de imóveis, entre outros temas práticos da vida em sociedade.

Ainda assim certos problemas persistem. Há pouca transparência e muita dúvida sobre os escolhidos para viver numa das propriedades coletivas. Sem falar no intenso comércio de drogas, que gera acusações de que o crime organizado domina a região. Entre os muros, o consumo de maconha é onipresente e livre.

“Há muitas contradições. Tem gente que mora lá e vive uma vida profissional fora da comunidade e sem qualquer envolvimento do ponto de vista político”, reconhece João da Mata, doutor em psicologia e em sociologia que trabalha com uma terapia anarquista chamada Soma há 30 anos e visitou Christiania na década de 1990.

“Mas a potência do local reside na resistência em se manter por tanto tempo como espaço de convivência e produção à margem do Estado e do capitalismo dinamarquês. Ela tem provado ao mundo ser possível viver numa sociedade sem autoridade constituída, sem delegação de poder por meio de mandatos e eleições. A cidade livre da Dinamarca criou um experimento social definitivo contra a ideia hegemônica de que os indivíduos se autodestruirão se não existir um controle estatal.”

Acácio Augusto, professor do Depar-tamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo, concorda: “Experiências longevas como esta mostram que a anarquia não é uma utopia, um projeto de futuro, mas uma prática do presente, um horizonte alargado diante do fatalismo estreito da vida sob o Estado e o capitalismo. É a efetiva realização da revolução permanente. Não se trata de dominar os meios de produção, mas de autogerir a vida, inventar outros meios para a vida livre”.

Não há poder público em Christiania. As propriedades e as decisões são coletivas (Kieran Lynam/Creative Commons

Independentemente do contraste entre a ordeira Dinamarca e a libertária comunidade instalada em sua capital, ou mesmo das disputas legais e burocráticas que eventualmente ocorrem entre elas, Christiania talvez seja tão bem-sucedida e duradoura justamente por ter surgido num contexto cultural conhecido por primar pela organização.

“Ela tem suas próprias regras, determinadas pelos seus conselhos administrativos. E os dinamarqueses têm, lenta, mas decisivamente, passado da hostilidade à aceitação positiva do direito de Christiania existir”, observa Larsen.

“As decisões tomadas sempre por consenso podem parecer difíceis para nós, brasileiros, acostumados ao poder da maioria sobre a minoria”, diz Da Mata. “Mas, para os habitantes de lá, o consenso só é impossível quando existe autoritarismo, quando alguém tenta impor uma opinião sem dar abertura para outras ideias aparecerem e até prevalecerem como melhor solução.” 

Os inúmeros grafites, os produtos à base de cannabis, as bicicletas com caçambas acopladas – produzidas pelo núcleo lésbico da ocupação e populares em toda a Copenhague –, e os shows grátis ao ar livre, com público cada vez maior, parecem indicar que, se há mesmo algo de podre no Reino da Dinamarca, não se encontra em Christiania.

Com informações CartaCapital

Nenhum comentário: