Na capital dinamarquesa,
uma comunidade autônoma ocupa um antigo distrito militar há quase 50 anos e
define suas próprias regras. A entrada da
"cidade", hoje ponto turístico de sucesso.
por José Gabriel Navarro
Em Copenhague, entre as ruínas do muros de uma antiga
base militar, ergue-se Christiania. Em um dos principais acessos, um grande
aviso esclarece: “Quem ultrapassar as muralhas deixará a União Europeia para trás e entrará em outro
território, uma nação à parte desligada das divisões geopolíticas tradicionais”
Desde os anos 1970, quando a base deixou de fazer
sentido para o governo dinamarquês, a região é ocupada por anarquistas, na
esteira de movimentos da contracultura que se espalharam pelo mundo em meados
da década anterior.
“Muitos ainda enxergam Christiania como área rebelde e
desregulada no coração da capital, onde a ilegalidade e o comércio de drogas
prosperam”, afirma Chris Holmsted Larsen, professor da Universidade de
Roskilde. “Mas eu, como a grande maioria, a entendo como algo singular,
criativo e valioso no meio de uma sociedade altamente regulada e um tanto
quanto entediante.”
Christiania autodeclarou-se cidade livre em 1971. Desde
então, a convivência entre os moradores do enclave e os habitantes de
Copenhague viveu altos e baixos, até se tornar mais pacífica a partir de 2007,
quando foi assinado um acordo entre a zona anarquista e o governo, definindo
termos para o pagamento de contas de luz e água e impostos, a coleta de lixo e
o repasse de imóveis, entre outros temas práticos da vida em sociedade.
Ainda assim certos problemas persistem. Há pouca
transparência e muita dúvida sobre os escolhidos para viver numa das
propriedades coletivas. Sem falar no intenso comércio de drogas, que gera
acusações de que o crime organizado domina a região. Entre os muros, o consumo
de maconha é onipresente e livre.
“Há muitas contradições. Tem gente que mora lá e vive
uma vida profissional fora da comunidade e sem qualquer envolvimento do ponto
de vista político”, reconhece João da Mata, doutor em psicologia e em
sociologia que trabalha com uma terapia anarquista chamada Soma há 30 anos e
visitou Christiania na década de 1990.
“Mas a potência do local reside na resistência em se
manter por tanto tempo como espaço de convivência e produção à margem do Estado
e do capitalismo dinamarquês. Ela tem provado ao mundo ser possível viver numa
sociedade sem autoridade constituída, sem delegação de poder por meio de
mandatos e eleições. A cidade livre da Dinamarca criou um experimento social
definitivo contra a ideia hegemônica de que os indivíduos se autodestruirão se
não existir um controle estatal.”
Acácio Augusto, professor do Depar-tamento de Relações
Internacionais da Universidade Federal de São Paulo, concorda:
“Experiências longevas como esta mostram que a anarquia não é uma utopia, um
projeto de futuro, mas uma prática do presente, um horizonte alargado diante do
fatalismo estreito da vida sob o Estado e o capitalismo. É a efetiva realização
da revolução permanente. Não se trata de dominar os meios de produção, mas de
autogerir a vida, inventar outros meios para a vida livre”.
Não há poder público em
Christiania. As propriedades e as decisões são coletivas (Kieran Lynam/Creative
Commons
Independentemente do contraste entre a ordeira
Dinamarca e a libertária comunidade instalada em sua capital, ou mesmo das
disputas legais e burocráticas que eventualmente ocorrem entre elas,
Christiania talvez seja tão bem-sucedida e duradoura justamente por ter surgido
num contexto cultural conhecido por primar pela organização.
“Ela tem suas próprias regras, determinadas pelos seus
conselhos administrativos. E os dinamarqueses têm, lenta, mas decisivamente,
passado da hostilidade à aceitação positiva do direito de Christiania existir”,
observa Larsen.
“As decisões tomadas sempre por consenso podem parecer
difíceis para nós, brasileiros, acostumados ao poder da maioria sobre a
minoria”, diz Da Mata. “Mas, para os habitantes de lá, o consenso só é
impossível quando existe autoritarismo, quando alguém tenta impor uma opinião
sem dar abertura para outras ideias aparecerem e até prevalecerem como melhor
solução.”
Os inúmeros grafites, os produtos à base de cannabis,
as bicicletas com caçambas acopladas – produzidas pelo núcleo lésbico da
ocupação e populares em toda a Copenhague –, e os shows grátis ao ar livre, com
público cada vez maior, parecem indicar que, se há mesmo algo de podre no Reino
da Dinamarca, não se encontra em Christiania.
Com informações CartaCapital
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