Do Justificando
“A retirada post mortem de tecidos,
órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá
ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada
por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante,
mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por
resolução do Conselho Federal de Medicina.”
O parágrafo acima é a transcrição do art. 3º, da Lei
9.434/1997, que autoriza a remoção de órgãos para fins de transplante. A
Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos – ABTO – define a morte
encefálica como “a completa e irreversível parada de todas as funções do
cérebro. Isto significa que, como resultado de severa agressão ou ferimento
grave no cérebro, o sangue que vem do corpo e supre o cérebro é bloqueado e o
cérebro morre.”
Ou seja, há batimento cardíaco, mas não existe nenhuma
atividade cerebral. Não havendo atividade cerebral, não há mais vida humana. A
partir desse momento, desse diagnóstico de morte encefálica, não há
mais pessoa, enquanto ser humano titular de direitos fundamentais,
dentre eles, evidentemente, o direito à vida; o que existe é coisa,
objeto de direito, objeto de disposição, nos limites da lei. Em outras palavra,
tem-se uma coisa, que é também um ser vivo, mas não se tem pessoa. O que rege,
portanto, a existência da vida é a atividade do sistema nervoso central.
No sítio oficial do Ministério da Saúde, a informação
que se colhe é que até o terceiro mês de gestação, não há sistema nervoso
central. Se é ele que determina a existência de vida humana no ventre, não há
como negar que, até esse momento, não existe ainda vida humana, mas expectativa
de vida humana.
No crime de aborto, o bem jurídico tutelado é a vida humana,
intra-uterina. Enquanto ela ainda não houver, não há vida humana, do ponto de
vista jurídico-legal, fazendo todo sentido jurídico, portanto, dizer-se que o
aborto é atípico até o terceiro mês de gestação, quando não há, ainda, a
formação de sistema nervoso central, ante a inexistência do bem jurídico
tutelado em lei.
O protesto contra a decisão do Supremo que permitiu o
aborto é fortemente informado por uma religiosidade, em uma discussão tão
antiga que me permite não gastar meu idioma.
Para a turma das igrejas, sejam quais forem, lembro que
há uma prática terrível, do ponto de vista moral, mas penalmente irrelevante: o
incesto. O incesto não é crime e nada obsta a filha maior de idade ser amante
de seu próprio pai, podendo, mesmo, ser amante de sua própria mãe, em uma
relação homoafetiva incestuosa. O fato é rigorosamente atípico, não obstante se
possa afirmar que nada existe de mais execrável em nossa moral.
Algo semelhante ocorre faz anos na Vara do Júri, em
casos de estações, onde se haja detectado alguma doença fetal, inviabilizadora
da vida extrauterina, cujas mães pedem alvarás que as autorize a interromper a
gravidez. Não há bem jurídico tutelado porque não há vida a ser protegida e,
por essas razões, o aborto nesses casos é também atípico e, via de
consequência, estranho à Justiça Criminal, sujeitando-se sua prática tão
somente à decisão da gestante e de seu médico, não havendo nenhuma participação
do suposto pai, sendo em tudo irrelevante sua eventual discordância.
Se a família de quem está em morte encefálica crê no
milagre da ressurreição, se a gestante crê no milagre da cura do feto cuja
doença se detectou, basta não doar, basta não interromper a gravidez. A
atipicidade tem desses confortos espirituais, a pessoa só adota a conduta, se e
quando quiser.
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