Por Renato Bazan - Portal CTB
Imagine um mundo em que os patrões possam revogar todos
os benefícios concedidos a seus funcionários sem discussão, sem direito à
intervenção da Justiça do Trabalho. Vale-alimentação, seguro de saúde,
estabilidade pré-aposentadoria - tudo o que for negociado pode ir pela janela.
Esse cenário opressivo pode se tornar nossa realidade a partir de 2017, graças
a um conjunto de ações do STF que chegaram ao ápice na última quinta-feira
(24).
Trata-se das consequências de três ações diferentes,
tramitando ao mesmo tempo: as ADIs 2200 e 2288, que tentam interligar os
contratos coletivos de trabalho com os individuais, e a ADPF 323, que quer
contrariar o Tribunal Superior do Trabalho em seu entendimento dos tais
contratos. Nos três casos, diferentes ministros decidiram por acabar com a
continuidade desses acordos depois de seus prazos-limite, mesmo que o patrão se
recuse a assinar outro.
Com isso, deram um tiro de morte na capacidade de
barganha dos trabalhadores a partir de 2017.
"Ultratividade": combinado não
sai caro
O que se discute, no fundo, é a “ultratividade” das
convenções coletivas - isto é, a continuidade dos acordos até que se negocie
outro. Isso é um incômodo para os empresários brasileiros, pois os obriga a ir
à mesa com seus funcionários.
Enquanto não houver data de validade para os
contratos firmados entre sindicatos e patrões, a única forma de alterá-los é
negociando a partir das concessões anteriores. O vídeo abaixo ajuda a entender:
O presidente do Sindicato dos Bancários da Bahia,
Augusto Vasconcelos, explica
o pode mudar: “Se essa regra deixar de existir, basta que as empresas se
recusem a renovar acordos já firmados e os direitos ali contidos deixarão de
existir. A cada campanha salarial, teremos de lutar para renovar cláusulas que
já foram conquistadas anteriormente, aumentando ainda mais a desigualdade nas negociações”.
Em um cenário ainda pior, o lado contratante poderá
simplesmente esperar o fim do prazo dos acordos de forma proposital, forçando
os trabalhadores a ceder vitórias anteriores para retomar as conversas. De
quebra, ainda se verá livre de todas as obrigações extras enquanto não for
firmado um novo contrato - algo que reduzirá de forma dramática o limite de
concessões.
O aspecto mais ardiloso é que, mesmo diante de uma
desonestidade negocial como essa, os sindicatos não poderão pedir a arbitragem da
Justiça do Trabalho, já que o dissídio coletivo só pode ser iniciado quando há
participação dos dois lados. O Poder Judiciário teria que assistir impotente
até que o patrão convidasse à mesa a Justiça do Trabalho - uma instância historicamente
pró-trabalhador. Melhor esperar sentado.
O caso das ADIs
Dentre os três processos que correm sobre o tema, as
ADIs 2200 e 2288 foram propostas pelo PCdoB e pela Confederação Nacional dos
Trabalhadores em Transportes Aquaviário (CONTTMAF) com conteúdo similar, para
tentar impedir a dissociação entre os contratos coletivos e individuais de
trabalho. São tão parecidas que correm em julgamento conjunto. O argumento
central, de que as cláusulas coletivas deveriam ser integradas aos contratos
permanentes de cada trabalhador, só foi aceito pelo ministro Edson Fachin, que
lembrou que a própria Constituição estende a proteção dos direitos trabalhistas
às convenções coletivas (está
no artigo 114, §2º).
Do outro lado, o processo já foi julgado de forma
desfavorável por Cármen Lúcia, Luís Roberto Barroso, Teori Zavascki e Marco
Aurélio de Mello. Na última quinta-feira (25), a ministra Rosa Weber paralisou
o julgamento com um
pedido de vistas, mas há pouca chance de reversão a essa altura do
campeonato.
Esse pessimismo tem nome e sobrenome: Gilmar Mendes.
Além de ter o voto mais reacionário de todo o STF, o ministro tem dado muitas
declarações de contrariedade às causas dos trabalhadores. Chegou a comparar a
Justiça do Trabalho a “um tribunal soviético” em um episódio recente, causando
furor entre os juízes trabalhistas, e não faz segredo de que votará
contra as ADIs. Daí restará apenas um voto para a perda da causa.
A bomba plantada por Gilmar Mendes
Resta, enfim, a ADPF 323, que tornou-se o olho do
furacão ao cair nas mãos de Gilmar Mendes. Proposta pela Confederação Nacional
dos Estabelecimentos de Ensino (Confenen), a ação busca reverter a Súmula 277
do Tribunal Superior do Trabalho, que torna infinito o prazo das negociações
coletivas.
Se for vitoriosa, a ação acabará com a ultratividade
dos acordos, fazendo-os durar por no máximo dois anos. Se nada aparecer no
lugar, somem os direitos.
A grande surpresa deste caso é que, logo na largada,
Gilmar Mendes concedeu uma decisão liminar que suspende os efeitos da Súmula
277 para TODAS AS CONVENÇÕES do Brasil. De um dia para outro, surgiu um buraco
negro nas leis trabalhistas.
“A primeira consequência desta decisão é a perda da
data-base das categorias”, enfatizou Hélio Gherardi, advogado do corpo técnico
do Diap. Ele explica que, se não houver o “comum acordo” para a intervenção da
Justiça do Trabalho, os trabalhadores não poderão fazer nada para reaver suas
perdas nos períodos de negociação. As negociações precisarão ser apressadas
para reduzir a defasagem. “Sem ultratividade, a negociação coletiva será
precarizada. Não haverá negociação coletiva plena”, lamentou o senador Paulo
Paim (PT-RS).
Um dos aspectos mais escandalizantes da decisão de
Gilmar é que ela atropela anos de prática jurídica consolidada. Em sua liminar
de 57 páginas, o ministro ignora a consistência das decisões em prol da
ultratividade das convenções, partindo para uma argumentação que é mais
política do que jurídica. Sua linha de fundo é simples: "os trabalhadores
são hiperprotegidos”, “não há equilíbrio nas negociações". Sob a camada de
juridiquês, esconde-se um ressentimento palpável contra a Justiça do Trabalho -
que ele afirma trabalhar para “dificultar as negociações”.
Gilmar se permite um grau de chacota inédito. A
fundamentação que constrói reforça a ideia de que os juízes do trabalho são uma
“fraude”, fazem um trabalho “ingênuo” e uma “proeza digna de figurar no Guiness
Book” pelo “ineditismo jurídico” que praticam. Na visão magnânima de Mendes,
sua decisão encerrará o “zigue zague jurídico” sobre o tema.
A luta não acabou
Entre essa decisão e outras anteriores, como a proibição
da desaposentação e a retirada de proteções durante a greve dos
servidores do Rio, o STF tem demonstrado uma cooperação perniciosa com Michel
Temer. O golpista em pessoa chegou a dizer, em
setembro, que já contava com a conivência togada para sua reforma
trabalhista: “Ela já está sendo feita de alguma maneira pelos próprios
tribunais”.
Felizmente, a liminar de Mendes é passível de reversão
pelo plenário do STF - algo que deve acontecer, considerando o caráter
abertamente ideológico da decisão. Para isso, porém, cabe à presidenta Carmen
Lúcia pautar o julgamento principal da ADPF 323, e não há qualquer calendário
publicado nesse sentido.
Importante notar que, ainda que a liminar caia, a
suspensão não terá efeito retroativo sobre os danos causados durante sua
vigência. Com o recesso do Supremo previsto para daqui a duas semanas, há pouco
tempo para impedir que essa sombra jurídica chegue a 2017.
É preciso agir rápido. Se este caso virar o ano, dará
espaço para a suspensão de benefícios das categorias cujas convenções coletivas
vencem já no primeiro trimestre.
Todas as consequências do fim da ultratividade
poderão ser postas em prática imediatamente.
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