Por Leonardo Sakamoto em seu blog
Uma coisa é o pensamento conservador, que merece ser
respeitado e, na minha opinião, questionado – quando for o caso – nas arenas
públicas e privadas de discussões.
A outra é gente que acha que a Constituição é papel
higiênico e as instituições democráticas – que levamos décadas para reconstruir
– são um grande vaso sanitário.
Nesta semana, a ocupação da Mesa Diretora da Câmara dos
Deputados pelo pessoal que acha que a democracia é a titica do cavalo do
bandido e vê comunismo na tigela dos Sucrilhos do café da manhã libertou uma
quantidade surpreendente de seres mágicos pela internet.
Por exemplo, trolls que pensei estarem adormecidos
desde que o tilintar de panelas cessou, orgulhoso de si mesmo, apesar da
corrupção seguir galopante.
Seres que defendem uma ''intervenção militar
constitucional'' (haha), o bloqueio da conversão do país em uma ''ditadura
gayzista'' (hahahaha) e uma ação para evitar a iminente ''implantação do
comunismo'' (#morri).
Pessoas que dizem que o mal precisa ser extirpado. E
quem é o mal? Daí reside o problema.
Ouvimos cada vez mais que há pessoas ou grupos que
representam o mal, cuja natureza é contra os costumes e as tradições dos
''homens e mulheres de bem'', e precisam ser extirpados. Eu mesmo já ouvi isso
mais de uma vez: ''você é um câncer que precisa ser extirpado''.
Na superfície dessa afirmação, há ódio. Mas se
escavarmos um pouco, chegaremos ao medo e, em seguida, à ignorância sobre o
outro. Pincelado por horas de aulas de História cabuladas para ir empinar pipa
ou fazer footing no shopping.
Tito de Alencar Lima, o Frei Tito, foi encontrado
enforcado no dia 10 de agosto de 1974, durante seu exílio na França, como
consequência da tortura que sofreu pelas mãos dos agentes da última ditadura
brasileira. Aquela incensada pelo pessoal acima citado. Trouxe a história dele
aqui por ocasião do aniversário de sua morte e gostaria de retomar parte de seu
testemunho.
Em 1969, ele foi um dos dominicanos presos pelo
torturador Sérgio Paranhos Fleury, delegado do Departamento de Ordem Política e
Social (Dops), acusados de apoiar as ações da resistência contra o regime. O
calvário de Tito, da prisão ao suicídio, tornou-se um dos símbolos da luta pela
liberdade.
Trago trechos do testemunho de Tito à Justiça Militar,
em 1969, em que conta como foram as sessões de tortura. O depoimento faz parte
de ação movida pelo Ministério Público Federal contra os torturadores. Isso é a
consequência da ''intervenção militar'' que esse povo tanto pede:
''Na quarta feira, fui acordado às 8 horas,
subi para a sala de interrogatórios, onde a equipe do capitão Homero me
esperava.
Repetiram as mesmas perguntas do dia
anterior. A cada resposta negativa, ou recebia cuteladas na cabeça, nos braços
e no peito.
Neste ritmo prosseguiram até o início da
noite, quando me serviram a primeira refeição naquelas 48 horas. (…)
Na quinta- feira, três policiais
acordaram-me à mesma hora do dia anterior. De estômago vazio, fui para a sala
de interrogatórios. Um capitão, cercado por uma equipe, voltou às mesmas
perguntas.
Vai ter que falar, senão, só sai morto
daqui”, gritou. Logo depois vi que isto não era apenas uma ameaça: era quase
uma certeza.
Sentaram-me na “cadeira de dragão” (com
chapas metálicas e fios), descarregaram choques nas mãos e na orelha esquerda.
A cada descarga, eu estremecia todo, como se o organismo fosse decompor.
Da sessão de choques, passaram-me ao
pau-de-arara. Mais choques, pauladas no peito e nas pernas cada vez que elas se
curvavam para aliviar a dor.
Uma hora depois, com o corpo todo sangrando
e todo ferido, desmaiei. Fui desamarrado e reanimado. Conduziram-me à outra
sala, dizendo que passariam a carga elétrica para 230 volts a fim de que eu
falasse “antes de morrer”. Não chegaram a fazê-lo.
Voltaram às perguntas, batiam em minhas
mãos com palmatórias. As mãos ficaram roxas e inchadas, a ponto de não ser
possível fechá-las. Novas pauladas. Era impossível saber qual parte do corpo
doía mais: tudo parecia massacrado.
Mesmo que quisesse, não poderia responder às perguntas: o raciocínio não se
ordenava mais. Restava apenas o desejo de perder novamente os sentidos.''
Por aqui, lidamos com o passado como se ele tivesse
automaticamente feito as pazes com o presente. Não, não fez. E o impacto de não
resolvermos o nosso passado se faz sentir no dia a dia das periferias das
grandes cidades, em manifestações, nos grotões da zona rural, com o Estado
aterrorizando, reprimindo e torturando parte da população (normalmente mais
pobre) com a anuência da outra parte (quase sempre mais rica).
Tito é torturado e morto novamente e novamente, todos
os dias, no Brasil, sob outros nomes, crenças, gênero ou cor de pele.
Normalmente, jovens, negros e pobres.
Diante da atual tentativa de excluir o espírito crítico
dos bancos escolares, através de ações reacionárias como o ''Escola Sem
Partido'', desejo que a história daquele período continue a ser contada nas
escolas até entrarem nos ossos e vísceras de nossas crianças e adolescentes a
fim de que nunca esqueçam que a liberdade do qual desfrutam não foi de mão
beijada. Mas custou o sangue, a carne e a saudade de muita gente.
Se ficarmos apenas assistindo boquiabertos aos
retrocessos sociais, ambientais, econômicos, políticos e civis, o que é um
pesadelo do passado voltará a ser nosso cotidiano. Liderado por falsos
''salvadores da pátria'', eleitos no braços de quem está cansado de tudo o que
está aí Inclusive da liberdade para procurar soluções de forma coletiva aos
problemas da sociedade.
Só dessa forma, os poucos milhares que hoje clamam por
um golpe militar ou pela volta da ditadura continuarão a ser vistos pelo
restante da sociedade como mal informados, ignorantes ou insanos.
Acho importante esse pessoal mostrar sua cara e dizem
quem é. Eu já estava cansado de ser xingado por anônimos na internet ou perfis
do Twitter com foto de ovo. Vocês não tinham curiosidade de saber quem eles
são? O que comem? Onde vivem? Como se acasalam?
Temos a responsabilidade de, uma vez identificados,
despejarmos todo o carinho e paciência possíveis. Pois, talvez um dia,
compreendam o que significa a liberdade que está diante de seus olhos, mas que
não conseguem enxergar.
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