Para
que a inserção de trabalhadoras negras no mundo laboral seja mais qualificada,
não basta esperar mudanças espontâneas: especialistas defendem políticas
públicas voltadas a empresas
No Dia da Consciência Negra, a série “Empoderamento
feminino” traz à tona dificuldades vivenciadas por mulheres pretas e pardas.
Relatório do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos
Socioeconômicos (Dieese) mostra que não há muito a comemorar e afirma que as
afrodescendentes “enfrentam uma dupla discriminação no mercado de trabalho, de
raça e de gênero”. Entre essas mulheres, na capital federal, a taxa de
desemprego é a mais elevada, e o valor pago por hora trabalhada é o mais baixo
(saiba mais em A dimensão da disparidade no DF). A exclusão se repete nos
demais locais avaliados pela Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED): Fortaleza,
Porto Alegre, São Paulo e Salvador.
Daniblack
ministra oficinas para conscientizar jovens sobre a identidade negra
Os números foram divulgados na última semana, mas eram
esperados. “A negra é a maior vítima do mercado de trabalho”, pondera frei
David Santos, diretor executivo da organização não governamental Educafro
(Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes). Na visão dele, essa
realidade é fruto dos quase 400 anos de escravidão de negros no Brasil e do
fato de, mundialmente, a mulher ser mais oprimida. O diretor da ONG vê poucos
avanços sociais e avalia que, em muitos casos, a escravidão apenas mudou de
formato.
“Não tem dois anos que as empregadas domésticas — em
maioria, negras — foram igualadas a outros trabalhadores”, comenta. No DF, 14%
das negras e 9,7% das não negras são domésticas. Mesmo entre as profissionais
pretas e pardas que tiveram acesso a boa educação e ocupam posições de melhor
remuneração, o racismo afeta o dia a dia. “Estive com uma dentista negra que,
volta e meia, é tratada como assistente, e houve pacientes que se recusaram a ser tratados por
ela”, exemplifica.
Professora de comunicação e serviço social da
Universidade Católica de Brasília (UCB), a doutora em comunicação e
pesquisadora de raça e gênero Isabel Clavelin observa que as negras se
encontram na base da pirâmide social. “Nas relações de trabalho, isso afeta
objetivamente o ingresso, o acesso a promoções, a permanência, o salário...
Elas se deparam ainda com outras dificuldades, como assédio sexual e moral.”
Essa estrutura é perpetuada, na opinião da pesquisadora, por uma conivência das
empresas com o racismo. “As companhias sabem da situação, mas pouco fazem”,
diz. Exemplo disso é que as negras são apenas 0,4% das executivas do país,
segundo dados do Instituto Ethos sobre as 500 maiores empresas do país.
Dione Moura, professora da Faculdade de Comunicação da
Universidade de Brasília (FAC/UnB), analisa que profissionais pretas e pardas
enfrentam diversos obstáculos — o primeiro deles, socioeconômico, que leva a
piores condições de educação. “Existe ainda uma visão de que elas são menos
capazes para o trabalho”, diz a doutora em ciências da informação.
Estética
O racismo o perpassa, inclusive, aspectos estéticos. Em
muitos casos, as próprias pretas e pardas têm em mente um ideal de beleza
europeu e, em outros, há cobranças para que elas se sujeitem a ele. “Quando a
primeira desembargadora negra do Rio de Janeiro — Ivone Caetano — foi tomar
posse, um desembargador perguntou se ela participaria da cerimônia com aquele
cabelo”, exemplifica frei David Santos.
“O preconceito não é causado pelo cabelo, pelo turbante
ou pela roupa, mas pelo que as pessoas acham que isso significa. O brasileiro
tem dificuldade de lembrar o período de escravidão, então optou por negar os
elementos africanos. Há uma fuga em reconhecer a identidade negra, e as dívidas
decorrentes dela. É uma tentativa de apagar essa ancestralidade que foi
injustiçada. O mesmo acontece com os indígenas”, analisa Dione Moura.
Essa tentativa de eliminar o débito social também
poderia explicar a rejeição às religiões de matriz africana. “Os escravos foram
impedidos de cultuar deuses próprios. Até hoje, esses ritos são considerados,
por muitos, como inapropriados”, comenta Isabel Clavelin. “Isso também afeta o
mundo do trabalho, pois pessoas dessas religiosidades são julgadas como
macumbeiras. É mais uma discriminação”, diz.
Soluções
“A humilhação que a mulher negra passa, desde o período
colonial, só será vencida com o trabalho conjunto da sociedade e com boas
políticas públicas”, propõe o frei David Santos, da Educafro. As pesquisadoras
Dione Moura e Isabel Clavelin concordam. “Precisamos de medidas que
responsabilizem as empresas. Não dá para o mercado se regular. Iniciativas de
adesão voluntária — como o Programa Pró-Equidade de Gênero e Raça, do governo
federal — têm pouca adesão. É preciso criar sanções”, defende Isabel. Para ela,
como as organizações, em geral, não enxergam a falta de inserção de
trabalhadoras negras como um problema, cabe ao governo trabalhar essa questão
de cima para baixo.
Opções que se mostraram positivas, na visão da
professora Dione Moura, são a Lei nº 10.639/2003, que estabelece a
obrigatoriedade de temas sobre a história e a cultura afro-brasileiras no
ensino básico, e as cotas raciais no ensino superior público, para aumentar o número de profissionais graduados
negros. No entanto, é preciso ter mais políticas públicas efetivas para o
mercado de trabalho. Ela cita os Estados Unidos como a nação com ações mais
fortes com relação a isso. “Esse país desenhou o perfil das empresas para
perceber se elas são inclusivas ou não. Mesmo lá, a solução não foi definitiva
(já que essas medidas não acabam com o racismo, mas garantem acesso a melhores
condições socioeconômicas): há poucos dias, a primeira-dama Michelle Obama foi
alvo de racismo, e isso teve consequências.”
Correio Brasiliense
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