domingo, 20 de novembro de 2016

Discriminação por raça deprecia força de trabalho das mulheres negras

Para que a inserção de trabalhadoras negras no mundo laboral seja mais qualificada, não basta esperar mudanças espontâneas: especialistas defendem políticas públicas voltadas a empresas

No Dia da Consciência Negra, a série “Empoderamento feminino” traz à tona dificuldades vivenciadas por mulheres pretas e pardas. Relatório do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese) mostra que não há muito a comemorar e afirma que as afrodescendentes “enfrentam uma dupla discriminação no mercado de trabalho, de raça e de gênero”. Entre essas mulheres, na capital federal, a taxa de desemprego é a mais elevada, e o valor pago por hora trabalhada é o mais baixo (saiba mais em A dimensão da disparidade no DF). A exclusão se repete nos demais locais avaliados pela Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED): Fortaleza, Porto Alegre, São Paulo e Salvador.

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Os números foram divulgados na última semana, mas eram esperados. “A negra é a maior vítima do mercado de trabalho”, pondera frei David Santos, diretor executivo da organização não governamental Educafro (Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes). Na visão dele, essa realidade é fruto dos quase 400 anos de escravidão de negros no Brasil e do fato de, mundialmente, a mulher ser mais oprimida. O diretor da ONG vê poucos avanços sociais e avalia que, em muitos casos, a escravidão apenas mudou de formato.

“Não tem dois anos que as empregadas domésticas — em maioria, negras — foram igualadas a outros trabalhadores”, comenta. No DF, 14% das negras e 9,7% das não negras são domésticas. Mesmo entre as profissionais pretas e pardas que tiveram acesso a boa educação e ocupam posições de melhor remuneração, o racismo afeta o dia a dia. “Estive com uma dentista negra que, volta e meia, é tratada como assistente, e houve  pacientes que se recusaram a ser tratados por ela”, exemplifica.

Professora de comunicação e serviço social da Universidade Católica de Brasília (UCB), a doutora em comunicação e pesquisadora de raça e gênero Isabel Clavelin observa que as negras se encontram na base da pirâmide social. “Nas relações de trabalho, isso afeta objetivamente o ingresso, o acesso a promoções, a permanência, o salário... Elas se deparam ainda com outras dificuldades, como assédio sexual e moral.” Essa estrutura é perpetuada, na opinião da pesquisadora, por uma conivência das empresas com o racismo. “As companhias sabem da situação, mas pouco fazem”, diz. Exemplo disso é que as negras são apenas 0,4% das executivas do país, segundo dados do Instituto Ethos sobre as 500 maiores empresas do país.

Dione Moura, professora da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (FAC/UnB), analisa que profissionais pretas e pardas enfrentam diversos obstáculos — o primeiro deles, socioeconômico, que leva a piores condições de educação. “Existe ainda uma visão de que elas são menos capazes para o trabalho”, diz a doutora em ciências da informação.

Estética

O racismo o perpassa, inclusive, aspectos estéticos. Em muitos casos, as próprias pretas e pardas têm em mente um ideal de beleza europeu e, em outros, há cobranças para que elas se sujeitem a ele. “Quando a primeira desembargadora negra do Rio de Janeiro — Ivone Caetano — foi tomar posse, um desembargador perguntou se ela participaria da cerimônia com aquele cabelo”, exemplifica frei David Santos.

“O preconceito não é causado pelo cabelo, pelo turbante ou pela roupa, mas pelo que as pessoas acham que isso significa. O brasileiro tem dificuldade de lembrar o período de escravidão, então optou por negar os elementos africanos. Há uma fuga em reconhecer a identidade negra, e as dívidas decorrentes dela. É uma tentativa de apagar essa ancestralidade que foi injustiçada. O mesmo acontece com os indígenas”, analisa Dione Moura.

Essa tentativa de eliminar o débito social também poderia explicar a rejeição às religiões de matriz africana. “Os escravos foram impedidos de cultuar deuses próprios. Até hoje, esses ritos são considerados, por muitos, como inapropriados”, comenta Isabel Clavelin. “Isso também afeta o mundo do trabalho, pois pessoas dessas religiosidades são julgadas como macumbeiras. É mais uma discriminação”, diz.

Soluções

“A humilhação que a mulher negra passa, desde o período colonial, só será vencida com o trabalho conjunto da sociedade e com boas políticas públicas”, propõe o frei David Santos, da Educafro. As pesquisadoras Dione Moura e Isabel Clavelin concordam. “Precisamos de medidas que responsabilizem as empresas. Não dá para o mercado se regular. Iniciativas de adesão voluntária — como o Programa Pró-Equidade de Gênero e Raça, do governo federal — têm pouca adesão. É preciso criar sanções”, defende Isabel. Para ela, como as organizações, em geral, não enxergam a falta de inserção de trabalhadoras negras como um problema, cabe ao governo trabalhar essa questão de cima para baixo.


Opções que se mostraram positivas, na visão da professora Dione Moura, são a Lei nº 10.639/2003, que estabelece a obrigatoriedade de temas sobre a história e a cultura afro-brasileiras no ensino básico, e as cotas raciais no ensino superior público, para  aumentar o número de profissionais graduados negros. No entanto, é preciso ter mais políticas públicas efetivas para o mercado de trabalho. Ela cita os Estados Unidos como a nação com ações mais fortes com relação a isso. “Esse país desenhou o perfil das empresas para perceber se elas são inclusivas ou não. Mesmo lá, a solução não foi definitiva (já que essas medidas não acabam com o racismo, mas garantem acesso a melhores condições socioeconômicas): há poucos dias, a primeira-dama Michelle Obama foi alvo de racismo, e isso teve consequências.”

Correio Brasiliense

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