Mas não se pode viver idilicamente
alheio a tudo. Principalmente quem não tem vocação para tartaruga. Muita
gente vive segundo crenças particulares ou tradições familiares,
desconsiderando as informações que regem ou afligem a vida dos outros
A mãe da escritora Colette tinha uma tartaruga chamada
Charlotte, que dormia durante todo o inverno. A menina Colette sabia que o
inverno tinha acabado quando sua mãe anunciava: “Charlotte s’éveille, c’est le
printemps”. Se Charlotte acordava, era primavera. Não importava que o
calendário não concordasse com a tartaruga. Ou que o próprio clima a
desmentisse. Podia estar nevando: se Charlotte abrisse os olhos, era primavera.
Não se sabe a idade da Charlotte. Podemos presumir que
fosse uma tartaruga que já vira passar muitas primaveras. E que, portanto, em
matéria de mudança de estação, era mais confiável do que o calendário ou o
clima. O calendário traz as datas oficiais em que uma estação termina e a outra
começa, com certeza burocrática e de acordo com cálculos precisos, indiferente
ao clima. O clima pode variar e até enlouquecer de ano para ano, indiferente ao
calendário. Já a tartaruga sente a mudança nas suas entranhas. Tem uma
sabedoria instintiva mais antiga do que qualquer calendário. Sabe que a hora exata
em que o inverno dá lugar à primavera é a sua hora de acordar. E vice-versa.
Muita gente vive segundo crenças particulares ou
tradições familiares, desconsiderando as informações que regem ou afligem a
vida dos outros. É gente que confia na Charlotte mais do que no senso comum.
Desconsidera os ciclos oficiais, o noticiário e todas as evidências em
contrário e só segue as convicções das suas entranhas — por mais estranhas que
sejam. Todo tipo de esoterismo é uma forma de acreditar na Charlotte, ou numa
sabedoria misteriosa anterior à inteligência.
Mas a Charlotte também serve como metáfora para outro
tipo de desconsideração, a das pessoas pelo significado maior dos
acontecimentos em que estão metidas, ou pelo que não afeta seus interesses
menores. Como aquele orador famoso que enaltecia as conquistas da Revolução
Francesa começando não pela liberdade, a fraternidade ou a igualdade, mas pela
sopa. Pois para ele o maior feito da Revolução fora acabar com o bouillon, que
era só o que servia nos restaurantes — o nome restaurant era o adjetivo que
descrevia a sopa restauradora —, e substituí-lo pela mesa variada, acessível a
todos os franceses. Para o orador, a revolução que importava ocorrera no menu.
Como ele, muita gente até hoje parece fazer questão de não entender o tempo em
que está vivendo, ou o que acontece à sua volta.
Também tem gente que só reconhece a importância de
qualquer notícia quando ela acorda a sua tartaruga interior. Há um certo
exagero, claro, em viver eternamente ligado nos fatos e preocupado com o mundo
e os resultados de eleições municipais. Num mundo em crise, isso é receita
certa para a neurose — por mais que seu pequeno feudo afetivo esteja em ordem.
Mas não se pode viver idilicamente alheio a tudo. Principalmente quem não tem
vocação para tartaruga.
Blog do Noblat
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