"Analisando o cenário político, sem paixões, percebemos claramente a incapacidade e inabilidade do Governo Federal em enfrentar essas crises", diz o documento.
Uma carta com duras críticas ao governo de Jair
Bolsonaro foi assinada por 152 bispos, arcebispos e bispos eméritos do Brasil.
Ela deveria ter sido publicado na última quarta-feira (22), mas foi suspensa
para ser analisada pelo conselho permanente da CNBB (Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil).
Há um temor entre signatários do documento de que o
setor conservador do órgão impeça a divulgação.
O texto, chamado de "Carta ao Povo de Deus",
afirma que o Brasil atravessa um dos momentos mais difíceis de sua história,
vivendo uma "tempestade perfeita". Ela combinaria uma crise sem
precedentes na saúde e um "avassalador colapso na economia" com a
tensão sofre "fundamentos da República, provocada em grande medida pelo
Presidente da República [Jair Bolsonaro] e outros setores da sociedade,
resultando numa profunda crise política e de governança".
"Analisando o cenário político, sem paixões,
percebemos claramente a incapacidade e inabilidade do Governo Federal em
enfrentar essas crises", diz o documento.
"Assistimos, sistematicamente, a discursos
anticientíficos, que tentam naturalizar ou normalizar o flagelo dos milhares de
mortes pela COVID-19, tratando-o como fruto do acaso ou do castigo
divino", segue a carta. Ela se refere também ao "caos socioeconômico
que se avizinha, com o desemprego e a carestia que são projetados para os
próximos meses, e os conchavos políticos que visam à manutenção do poder a qualquer
preço".
"Esse discurso não se baseia nos princípios éticos
e morais, tampouco suporta ser confrontado com a Tradição e a Doutrina Social
da Igreja, no seguimento àquele que veio `para que todos tenham vida e a tenham
em abundância,
segue a carta.
Os religiosos fazem críticas também às reformas
trabalhista e previdenciária. Segundo eles, ambas, "tidas como para
melhorarem a vida dos mais pobres, mostraram-se como armadilhas que
precarizaram ainda mais a vida do povo".
Eles reconhecem que o país precisa de reformas,
"mas não como as que foram feitas, cujos resultados pioraram a vida dos
pobres, desprotegeram vulneráveis, liberaram o uso de agrotóxicos antes
proibidos, afrouxaram o controle de desmatamentos e, por isso, não favoreceram
o bem comum e a paz social. É insustentável uma economia que insiste no
neoliberalismo, que privilegia o monopólio de pequenos grupos poderosos em
detrimento da grande maioria da população".
O documento afirma ainda que o "sistema do atual
governo" não coloca no centro a pessoa humana e o bem de todos, "mas
a defesa intransigente dos interesses de uma economia que mata, centrada no
mercado e no lucro a qualquer preço".
Para eles, o ministro da Economia, Paulo Guedes,
"desdenha dos pequenos empresários" e o governo promove "uma
brutal descontinuidade da destinação de recursos para as políticas públicas no
campo da alimentação, educação, moradia e geração de renda".
A carta diz ainda que "o desprezo pela educação,
cultura, saúde e pela diplomacia" estarrece, sendo visível nas
demonstrações de "raiva" pela educação pública e no "apelo a
ideias obscurantistas".
Cita também o que julga ser o uso da religião para
"manipular sentimentos e crenças", provocando tensões entre
igrejas."Ressalte-se o quanto é perniciosa toda associação entre religião
e poder no Estado laico, especialmente a associação entre grupos religiosos
fundamentalistas e a manutenção do poder autoritário", segue o documento.
O texto é assinado, entre outros, pelo arcebispo
emérito de São Paulo, dom Claudio Hummes, pelo bispo emérito de Blumenau, dom
Angélico Sandalo Bernardino, pelo bispo de São Gabriel da Cachoeira (AM), dom
Edson Taschetto Damian, pelo arcebispo de Belém (PA), dom Alberto Taveira
Corrêa, pelo bispo prelado emérito do Xingu (PA), dom Erwin Krautler, pelo
bispo auxiliar de Belo Horizonte (MG), dom Joaquim Giovani Mol, e pelo
arcebispo de Manaus (AM) e ex-secretário-geral da CNBB dom Leonardi Ulrich.
Os religiosos pedem a abertura de "um amplo
diálogo nacional que envolva humanistas, os comprometidos com a democracia,
movimentos sociais, homens e mulheres de boa vontade, para que seja
restabelecido o respeito à Constituição Federal e ao Estado Democrático de
Direito".
Eles afirmam ainda que "todos, pessoas e
instituições, seremos julgados pelas ações ou omissões neste momento tão grave
e desafiador".
Leia,
abaixo, a íntegra da "Carta ao Povo de Deus":
"Somos bispos da Igreja Católica, de várias
regiões do Brasil, em profunda comunhão com o Papa Francisco e seu magistério e
em comunhão plena com a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, que no
exercício de sua missão evangelizadora, sempre se coloca na defesa dos
pequeninos, da justiça e da paz. Escrevemos esta Carta ao Povo de Deus,
interpelados pela gravidade do momento em que vivemos, sensíveis ao Evangelho e
à Doutrina Social da Igreja, como um serviço a todos os que desejam ver
superada esta fase de tantas incertezas e tanto sofrimento do povo.
Evangelizar é a missão própria da Igreja, herdada de
Jesus. Ela tem consciência de que evangelizar
é tornar o Reino de Deus presente no
mundo (Alegria do Evangelho, 176). Temos
clareza de que a
proposta do Evangelho não consiste só numa relação pessoal com Deus. A nossa
reposta de amor não deveria ser entendida como uma mera soma de pequenos gestos
pessoais a favor de alguns indivíduos necessitados [...], uma série de ações
destinadas apenas a tranquilizar a própria consciência. A proposta é o Reino de
Deus [...] (Lc 4,43 e Mt 6,33)
(Alegria do Evangelho, 180). Nasce daí a
compreensão
de que o Reino de Deus é
dom, compromisso e meta.
É neste horizonte que nos posicionamos frente à
realidade atual do Brasil. Não temos interesses político-partidários,
econômicos, ideológicos ou de qualquer outra natureza. Nosso único interesse é
o Reino de Deus, presente em nossa história, na medida em que avançamos na
construção de uma sociedade estruturalmente justa, fraterna e solidária, como
uma civilização do amor.
O Brasil atravessa um dos períodos mais difíceis de sua
história, comparado a uma tempestade
perfeita que, dolorosamente, precisa ser
atravessada. A causa dessa tempestade é a
combinação de uma crise de saúde
sem precedentes, com um avassalador colapso da economia e com a tensão que se
abate sobre os fundamentos da República, provocada em grande medida pelo
Presidente da República e outros setores da sociedade, resultando numa profunda
crise política e de governança.
Este cenário de perigosos impasses, que colocam nosso
País à prova, exige de suas instituições, líderes e organizações civis muito
mais diálogo do que discursos ideológicos fechados. Somos convocados a
apresentar propostas e pactos objetivos, com vistas à superação dos grandes
desafios, em favor da vida, principalmente dos segmentos mais vulneráveis e
excluídos, nesta sociedade estruturalmente desigual, injusta e violenta. Essa
realidade não comporta indiferença.
É dever de quem se coloca na defesa da vida
posicionar-se, claramente, em relação a esse cenário. As escolhas políticas que
nos trouxeram até aqui e a narrativa que propõe a complacência frente aos
desmandos do Governo Federal, não justificam a inércia e a omissão no combate
às mazelas que se abateram sobre o povo brasileiro. Mazelas que se abatem
também sobre a Casa Comum, ameaçada constantemente pela ação inescrupulosa de
madeireiros, garimpeiros, mineradores, latifundiários e outros defensores de um
desenvolvimento que despreza os direitos humanos e os da mãe terra. Não
podemos pretender ser saudáveis
num mundo que está
doente. As feridas causadas à
nossa mãe terra sangram também a nós
(Papa Francisco, Carta ao Presidente da Colômbia
por ocasião
do Dia Mundial do Meio Ambiente, 05/06/2020).
Todos, pessoas e instituições, seremos julgados pelas
ações ou omissões neste momento tão grave e desafiador. Assistimos,
sistematicamente, a discursos anticientíficos, que tentam naturalizar ou
normalizar o flagelo dos milhares de mortes pela COVID-19, tratando-o como
fruto do acaso ou do castigo divino, o caos socioeconômico que se avizinha, com
o desemprego e a carestia que são projetados para os próximos meses, e os
conchavos políticos que visam à manutenção do poder a qualquer preço. Esse discurso
não se baseia nos princípios éticos e morais, tampouco suporta ser confrontado
com a Tradição e a Doutrina Social da Igreja, no seguimento Àquele que veio para que todos tenham vida e a tenham
em abundância (Jo 10,10).
Analisando o cenário político, sem paixões, percebemos
claramente a incapacidade e inabilidade do Governo Federal em enfrentar essas
crises. As reformas trabalhista e previdenciária, tidas como para melhorarem a
vida dos mais pobres, mostraram-se como armadilhas que precarizaram ainda mais
a vida do povo. É verdade que o Brasil necessita de medidas e reformas sérias,
mas não como as que foram feitas, cujos resultados pioraram a vida dos pobres,
desprotegeram vulneráveis, liberaram o uso de agrotóxicos antes proibidos,
afrouxaram o controle de desmatamentos e, por isso, não favoreceram o bem comum
e a paz social. É insustentável uma economia que insiste no neoliberalismo, que
privilegia o monopólio de pequenos grupos poderosos em detrimento da grande
maioria da população.
O sistema do atual governo não coloca no centro a
pessoa humana e o bem de todos, mas a defesa intransigente dos interesses de
uma economia que mata (Alegria do Evangelho, 53), centrada
no mercado e no lucro a qualquer preço.
Convivemos, assim, com a incapacidade e a incompetência do Governo Federal,
para coordenar suas ações, agravadas pelo fato de ele se colocar contra a
ciência, contra estados e municípios, contra poderes da República; por se
aproximar do totalitarismo e utilizar de expedientes condenáveis, como o apoio
e o estímulo a atos contra a democracia, a flexibilização das leis de trânsito
e do uso de armas de fogo pela população, e das leis do trânsito e o recurso à
prática de suspeitas ações de comunicação, como as notícias falsas, que
mobilizam uma massa de seguidores radicais.
O desprezo pela educação, cultura, saúde e pela
diplomacia também nos estarrece. Esse desprezo é visível nas demonstrações de
raiva pela educação pública; no apelo a ideias obscurantistas; na escolha da
educação como inimiga; nos sucessivos e grosseiros erros na escolha dos
ministros da educação e do meio ambiente e do secretário da cultura; no
desconhecimento e depreciação de processos pedagógicos e de importantes
pensadores do Brasil; na repugnância pela consciência crítica e pela liberdade
de pensamento e de imprensa; na desqualificação das relações diplomáticas com
vários países; na indiferença pelo fato de o Brasil ocupar um dos primeiros
lugares em número de infectados e mortos pela pandemia sem, sequer, ter um
ministro titular no Ministério da Saúde; na desnecessária tensão com os outros
entes da República na coordenação do enfrentamento da pandemia; na falta de
sensibilidade para com os familiares dos mortos pelo novo coronavírus e pelos
profissionais da saúde, que estão adoecendo nos esforços para salvar vidas.
No plano econômico, o ministro da economia desdenha dos
pequenos empresários, responsáveis pela maioria dos empregos no País,
privilegiando apenas grandes grupos econômicos, concentradores de renda e os
grupos financeiros que nada produzem. A recessão que nos assombra pode fazer o
número de desempregados ultrapassar 20 milhões de brasileiros. Há uma brutal
descontinuidade da destinação de recursos para as políticas públicas no campo
da alimentação, educação, moradia e geração de renda.
Fechando os olhos aos apelos de entidades nacionais e
internacionais, o Governo Federal demonstra omissão, apatia e rechaço pelos
mais pobres e vulneráveis da sociedade, quais sejam: as comunidades indígenas,
quilombolas, ribeirinhas, as populações das periferias urbanas, dos cortiços e
o povo que vive nas ruas, aos milhares, em todo o Brasil. Estes são os mais
atingidos pela pandemia do novo coronavírus e, lamentavelmente, não vislumbram
medida efetiva que os levem a ter esperança de superar as crises sanitária e
econômica que lhes são impostas de forma cruel. O Presidente da República, há
poucos dias, no Plano Emergencial para Enfrentamento à COVID-19, aprovado no
legislativo federal, sob o argumento de não haver previsão orçamentária, dentre
outros pontos, vetou o acesso a água potável, material de higiene, oferta de
leitos hospitalares e de terapia intensiva, ventiladores e máquinas de
oxigenação sanguínea, nos territórios indígenas, quilombolas e de comunidades
tradicionais (Cf. Presidência da CNBB, Carta Aberta ao Congresso Nacional,
13/07/2020).
Até a religião é utilizada para manipular sentimentos e
crenças, provocar divisões, difundir o ódio, criar tensões entre igrejas e seus
líderes. Ressalte-se o quanto é perniciosa toda associação entre religião e
poder no Estado laico, especialmente a associação entre grupos religiosos
fundamentalistas e a manutenção do poder autoritário. Como não ficarmos
indignados diante do uso do nome de Deus e de sua Santa Palavra, misturados a
falas e posturas preconceituosas, que incitam ao ódio, ao invés de pregar o
amor, para legitimar práticas que não condizem com o Reino de Deus e sua
justiça?
O momento é de unidade no respeito à pluralidade! Por
isso, propomos um amplo diálogo nacional que envolva humanistas, os
comprometidos com a democracia, movimentos sociais, homens e mulheres de boa
vontade, para que seja restabelecido o respeito à Constituição Federal e ao
Estado Democrático de Direito, com ética na política, com transparência das
informações e dos gastos públicos, com uma economia que vise ao bem comum, com
justiça socioambiental, com terra,
teto e trabalho,
com alegria e proteção
da família, com educação e saúde integrais e de qualidade para todos. Estamos
comprometidos com o recente Pacto
pela vida e pelo Brasil,
da CNBB e entidades da sociedade civil brasileira, e em sintonia com o Papa
Francisco, que convoca a humanidade para pensar um novo Pacto Educativo Global e a nova Economia de Francisco e Clara, bem como, unimo-nos aos movimentos
eclesiais e populares que buscam novas e urgentes alternativas para o Brasil.
Neste tempo da pandemia que nos obriga ao
distanciamento social e nos ensina um novo
normal, estamos redescobrindo nossas casas e
famílias como nossa Igreja doméstica, um espaço do encontro com Deus e com os irmãos e irmãs. É
sobretudo nesse ambiente que deve brilhar a luz do Evangelho que nos faz
compreender que este tempo não é para a indiferença, para egoísmos, para
divisões nem para o esquecimento (cf. Papa Francisco, Mensagem Urbi et Orbi,
12/4/20).
Despertemo-nos,
portanto, do sono que nos imobiliza e nos faz meros espectadores da realidade
de milhares de mortes e da violência que nos assolam. Com o apóstolo São Paulo,
alertamos que a
noite vai avançada
e o dia se aproxima; rejeitemos as obras das trevas e vistamos a armadura da
luz (Rm 13,12).
O
Senhor vos abençoe e vos guarde. Ele vos mostre a sua face e se compadeça de
vós.
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