O
ministro sumirá da história e a obra do premiado fica, enquanto houver alguma
forma de livro no planeta
Do Jornal GGN
Em artigo publicado no portal português Público, a
jornalista e escritora Alexandra Lucas Coelho comenta a entrega do Prêmio
Camões, concedido em parceria entre Brasil e Portugal, para o escritor Raduan
Nassar, na semana passada.
Raduan fez um discurso crítico ao governo de Michel
Temer, e o ministro da Cultura, Roberto Freire, respondeu irritado à fala do
premiado. Para Alexandra, o caso mostra como Freire não consegue distinguir
Estado e governo, “confundindo-se a si mesmo”.
Ela ressalta que quem escolhe o premiado é um júri
independente. “Os premiados do Camões não são escolhas de nenhum governo”,
afirma, derrubando um dos argumentos de Freire, que “sumirá da história”.
Leia mais abaixo:
Do Público.pt
O ministro que se confundiu a si mesmo com um prémio
O ministro sumirá da história e a obra do premiado
fica, enquanto houver alguma forma de livro no planeta.
ALEXANDRA LUCAS COELHO
1. A cerimónia de entrega do Prémio Camões, o maior da
língua portuguesa, sexta-feira passada, em São Paulo, foi um retrato do que
está em curso no Brasil, mas não só. Revelou a que ponto um ministro não
distingue Estado e governo, confundindo-se a si mesmo com um prémio. E como
querer separar cultura e política leva a uma política sem cultura.
2. O premiado desta edição era o brasileiro Raduan
Nassar. A decisão, unânime, foi tomada em Maio de 2016 por um júri composto por
críticos e escritores de vários países de língua portuguesa. O anúncio
coincidiu com o início do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff.
Mas não era esse governo, ou um seu sucessor, que atribuía o prémio a Raduan
Nassar, e sim um júri independente. Aos governos de Portugal e Brasil que na
altura da entrega estivessem em funções competiria cumprir, em nome dos
Estados, o compromisso que existe desde que o prémio foi instituído,
assegurando o montante em dinheiro. Os premiados do Camões não são escolhas de
nenhum governo. Qualquer confusão em relação a isto será um insulto à ideia do
prémio, aos júris que já o atribuíram, a cada nome que o recebe, e a quem
acredita na sua independência.
3. A obra de Raduan Nassar é daquelas que muda a língua
e os leitores, e mantém-se tão breve quanto única. Foi publicada sobretudo nos
anos 1960 e 1970, depois o autor largou a literatura, tornou-se fazendeiro,
desapareceu do espaço público. Durante décadas esse silêncio tornou-se
lendário. Mas em 2016, no início do impeachment, Raduan mandou a lenda às
urtigas por achar que o impeachment era um golpe. Falou, foi a Brasília ter com
Dilma, protestou na imprensa. Fez isso num Brasil dividido ao extremo, o que
lhe valeu ser insultado aos 80 anos pelos que acima de tudo odiavam Lula, Dilma
e o PT. Não se tratava apenas de discordar de Raduan, mas de o diminuir como
anacrónico. Ele, que ao fim de décadas voltara para fazer o mais difícil,
aparecer. E como teria sido tentador continuar fora da mortal turba humana. Mas
Raduan deixou o olimpo para os livros e arregaçou as mangas.
4. O governo que ocupou o poder pós-impeachment já vai na
sua segunda tentativa de ministro da Cultura. Seja por isso, seja porque Michel
Temer & Cia receavam o que Raduan pudesse dizer, a entrega do Prémio Camões
só aconteceu agora. Dado que Raduan quebrara várias vezes o silêncio em 2016
era de prever que aproveitasse para um discurso político. E foi o que
aconteceu. Um breve discurso contundente em relação ao actual governo
brasileiro, e ao sistema que o favorece. Depois de um par de frases para o
outro lado do Atlântico (“Estive em Portugal em 1976, fascinado pelo país,
resplandecente desde a Revolução dos Cravos no ano anterior. Além de amigos
portugueses, fui sempre carinhosamente acolhido”), Raduan estabeleceu o
contraponto com o Brasil de 2017: “Vivemos tempos sombrios, muito sombrios”.
Deu exemplos de invasões em sedes do PT e em escolas de vários estados; de
prisões de membros dos movimentos sociais, de “violência contra a oposição
democrática ao manifestar-se na rua”, da responsabilidade governamental nas
“tragédias nos presídios de Manaus e Roraima”, de um “governo repressor”:
“contra o trabalhador, contra aposentadorias criteriosas, contra universidades
federais de ensino gratuito, contra a diplomacia ativa e altiva”. Um “governo
atrelado, por sinal, ao neoliberalismo com sua escandalosa concentração da
riqueza”, “amparado pelo Ministério Público e, de resto, pelo Supremo Tribunal
Federal”. Um Supremo coerente “com seu passado à época do regime militar”, que
“propiciou a reversão da nossa democracia: não impediu que Eduardo Cunha, então
presidente da Câmara dos Deputados e réu na Corte, instaurasse o processo de
impeachment de Dilma Rousseff.” Aqui Raduan concluiu: “Íntegra, eleita pelo
voto popular, Dilma foi afastada definitivamente no Senado. O golpe estava
consumado. Não há como ficar calado.”
5. A plateia, em pé, aplaudiu. Os três anfitriões da
cerimónia permaneceram quietos: embaixador de Portugal, Jorge Cabral, directora
da Biblioteca Nacional, Helena Severo, e ministro brasileiro da Cultura,
Roberto Freire, que então se levantou para ir ao púlpito. Com Raduan já
sentado, Freire decidiu responder-lhe de improviso, numa longa intervenção
gesticulante, que foi subindo de tom. “Lamentavelmente, o Brasil de hoje
assiste perplexo a algumas pessoas da nossa geração, que têm o privilégio de
dar exemplos e que viveram um efetivo golpe nos anos 60 do século passado, e
que dão o inverso”, disse. “Que os jovens façam isso já seria preocupante, mas
não causaria esta perplexidade”. Quando falou no “momento democrático que o
Brasil vive” ouviram-se as primeiras gargalhadas e vaias da plateia. A partir
daí foi uma escalada, com o ministro a levantar a voz para se impôr ao bruá,
martelando palavras. Este prémio, afirmou, “é dado pelo governo democrático
brasileiro e não foi rejeitado”. Adiante insistiu: “É um adversário recebendo
um prémio de um governo que ele considera ilegítimo, mas não é ilegítimo para o
prémio que ele recebeu.” Ou: “Quem dá prémios a adversário político não é a
ditadura.” Ou: “É fácil fazer protesto em momentos de governo democrático como
o actual.” Ignorou quando alguém da plateia o alertou para o óbvio: “Hoje é dia
do Raduan!” Quando alguém pediu “Respeito a Raduan!”, devolveu: “Ele
desrespeitou todos nós!” Respondeu sarcasticamente a autores na plateia. A dada
altura, o professor da USP Augusto Massi disse: “Acho que você não está à
altura do evento.” Massi disse à “Folha de S. Paulo” que Freire lhe chamou
idiota depois, na saída. À “Folha, Freire disse que fizera aquele discurso dada
a “deselegância” de Raduan: “Se ele viesse dizer que não aceitava o prémio, a
crítica que ele fez até podia ser justa.” Mais tarde declarou: “Quem assinou,
convidou e pagou o prémio foi este governo.” E ainda: “Tinha tantos que não
foram ali para aplaudir um escritor, foram para [me] agredir, acho que até fui
brando.”
6. Ou seja, para o ministro a) este prémio é dado por
este governo b) quem critica este governo dá mau exemplo c) jovens críticos já
é mau mas velhos ainda é pior d) se Raduan queria criticar não aceitava o
prémio e) quem vaiara o ministro tinha vindo não por Raduan mas para o agredir
a ele, ministro. E com tudo isto o ministro suplantou as críticas de Raduan na
repercussão mediática. Em suma, não é de espantar que o megalómano ministro
venha a dizer: o prémio, fui eu.
7. Claro que o ministro sumirá da história e a obra do
premiado fica, enquanto houver alguma forma de livro no planeta. Para os livros
de Raduan Nassar é indiferente o que passou na sexta. Mas a nós,
contemporâneos, importa, sim, que um membro do poder político abuse do cargo,
confundindo, distorcendo e agredindo um criador como Raduan, protagonista único
da cerimónia, que lhe devia merecer, no mínimo, silêncio. Não cabe ao ministro
aprovar ou reprovar o discurso do premiado, não lhe cabe responder. Tal como
não é preciso alguém estar de acordo com Raduan politicamente para entender
como foi absurdo o que se passou. O prémio não é deste governo, é patrocinado
por dois Estados, e atribuído por um júri. A sua aceitação nunca deverá
implicar um discurso bem-agradecido. Um ministro da Cultura que veja os
criadores como estando ao serviço não entendeu nada. Idem para quem sugere que
se pode tirar a política da cultura, e vice-versa. De resto, o que o actual
governo brasileiro está a fazer na Cultura é um desmonte do muito que veio
sendo construído. Se há áreas em que os anos de Lula deram frutos fortes, a
Cultura é certamente uma delas.
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