Do blog do Sorrentino
“É fato inquestionável que as principais instituições
de autoridade no Ocidente, por décadas, tentaram de forma incansável, e cheios
de indiferença, comprometer o bem-estar econômico e a segurança social de
dezenas de milhões de pessoas. Enquanto a elite se esbaldava em
globalismo, mercados livres, apostas financeiras em Wall Street e guerras sem
fim (que enriqueceram seus autores, mas enviaram pobres e setores
marginalizados da sociedade para arcar com seus fardos), também ignorava
completamente as vítimas de sua ganância, exceto quando as vítimas reclamavam muito
— causando tumultos — e, logo, eram chamados de forma pejorativa de trogloditas
que mereciam perder no glorioso jogo da meritocracia global.
“Por muitos anos, os EUA — assim como o Reino Unido e
outros países do ocidente — embarcaram em um rumo que praticamente garantiu o
colapso da autoridade da elite e uma implosão interna. A invasão do Iraque, a
crise financeira de 2008, a situação do sistema prisional e as guerras sem fim,
os benefícios obtidos pela sociedade foram dirigidos quase que exclusivamente
às instituições de elite, principais responsáveis pelo fracasso e às custas de
todo o resto.
“Era apenas uma questão de tempo para que tudo isso
resultasse em instabilidade, reações e rupturas. Tanto o Brexit quando a
eleição de Trump são sinais inequívocos desse resultado. A única questão é se
estes dois eventos serão o ápice deste processo ou apenas seu começo. E isso,
por sua vez, será determinado pelo aprendizado – e internalização – dessas
importantes lições, ou se serão ignoradas em favor de campanhas que lavam suas
mãos de culpa e a direcionam para outros.
O escritor e
jornalista americano Glenn Greenwald ficou mundialmente conhecido ao ser escolhido
por Edward Snowden para revelar a enorme rede de grampos da National Security
Agency (NSA), do governo dos EUA. Dilma Rousseff e Angela Merkel foram
espionadas, entre outros chefes de Estado
OS PARALELOS ENTRE O REFERENDO sobre
a saída do Reino Unido da União Europeia (Brexit), em junho, e o chocante
resultado da eleição presidencial dos EUA vencida por Donald Trump são enormes.
As elites (fora dos círculos populistas de direita) se uniram fortemente contra
os dois movimentos, independentemente de suas posições ideológicas. Os
apoiadores do Brexit e de Trump foram chamados de primitivos, estúpidos,
racistas, xenofóbicos e irracionais pela narrativa da mídia dominante (seja de
forma justificada ou injustificada).
Em ambos os casos, jornalistas que passaram o dia
conversando no Twitter e se reunindo com seus grupos sociais em círculos
exclusivos nas capitais dos países — reafirmando constantemente sua sabedoria
em um interminável círculo vicioso — estavam certos da vitória de Clinton.
Depois dos resultados, as elites, que tiveram suas certezas destroçadas,
investiram todas as suas energias em responsabilizar tudo e todos que viam pela
frente, exceto a si mesmos, ao mesmo tempo em que reafirmavam seu desmedido
desprezo por aqueles que os contestaram, recusando-se a analisar as verdadeiras
causas do voto de insubordinação.
É fato inquestionável que as principais instituições de
autoridade no Ocidente, por décadas, tentaram de forma incansável, e cheios de
indiferença, comprometer o bem-estar econômico e a segurança social de dezenas
de milhões de pessoas. Enquanto a elite se esbaldava em globalismo,
mercados livres, apostas financeiras em Wall Street e guerras sem fim (que
enriqueceram seus autores, mas enviaram pobres e setores marginalizados da
sociedade para arcar com seus fardos), também ignorava completamente as vítimas
de sua ganância, exceto quando as vítimas reclamavam muito — causando tumultos
— e, logo, eram chamados de forma pejorativa de trogloditas que mereciam perder
no glorioso jogo da meritocracia global.
O recado foi ouvido em alto e bom som. As instituições
e os setores elitizados que passaram anos zombando, difamando e saqueando
grande parte da população — enquanto acumulavam um histórico de fracassos,
corrupção e destruição — estão surpresos por suas ordens e direcionamentos
terem sido ignorados. Mas seres humanos naturalmente não obedecem a pessoas que
consideram ser os principais responsáveis por seu sofrimento. Fazem exatamente
o oposto: os desafiam e tentam impor castigos como forma de retaliação. As
ferramentas usadas para a retaliação foram o Brexit e Trump. Esses são seus
agentes, enviados em uma missão de destruição. Destruição de um sistema e de
uma cultura que consideram, com razão, estarem tomados por corrupção e, acima
de tudo, desprezo por eles e por seu bem-estar.
Logo após o referendo que optou pelo Brexit,
escrevi um
artigo detalhando essa dinâmica e não vou repetir os argumentos aqui,
mas espero que os interessados o leiam. O título deixa claro o cerne do artigo:
“O Brexit é apenas a mais recente prova da insularidade e do fracasso das
instituições ocidentais”. Essa análise foi inspirada por um
texto curto, porém perspicaz, sobre o Brexit no Facebook e, agora,
mais relevante do que nunca, de Vincent Bevins, do Los Angeles Times,
em que diz: “Brexit e o Trumpismo são respostas incorretas para perguntas
legítimas que as elites urbanas se recusaram a responder por 30 anos”; em
particular, “desde os anos 80, as elites de países ricos exageraram, levando
todos os lucros e tapando os ouvidos quando os outros falavam, e agora estão
horrorizadas assistindo à revolta dos eleitores”.
Aqueles que se retiraram da câmara de eco de
autoafirmação da elite pró-Clinton não tiveram dificuldade em perceber os
sinais de alerta enviados pelo Brexit. Esses dois trechos de uma
entrevista que dei ao site Slate em julho deste ano
— aqui e aqui —
resumem esses graves perigos: as elites formadoras de opinião estavam unidas de
uma forma extremamente incestuosa e tão distantes da população que decidiria
essas eleições, sentiam tanto desprezo por ela, que não foram capazes de
observar as tendências em favor de Trump e, além disso, aceleraram essas
tendências involuntariamente com seu próprio comportamento.
Como quase todo mundo que viu as pesquisas e modelos
dos autointitulados especialistas em dados da mídia, eu acreditava que Clinton
venceria, mas não era difícil perceber os motivos pelos quais ela poderia vir a
perder. O pisca-alerta piscava em neon há muito tempo, mas em lugares fétidos,
cuidadosamente ignorados pelas elites. As poucas pessoas que, acertadamente,
visitaram esses lugares, como
Chris Arnade, puderam vê-las e escutá-las claramente. Ignorar continuamente
esse intenso, mas invisível, sofrimento garante o seu crescimento e
fortalecimento. Este foi o último parágrafo de meu artigo, em Julho, sobre as
consequências do Brexit:
“Ao invés de reconhecer e corrigir suas falhas fundamentais,
[as elites] estão dedicando suas energias para demonizar as vítimas de sua
corrupção, a fim de deslegitimar as queixas e, assim, se livrar da
responsabilidade de resolvê-las de forma significativa. Essa reação serve
apenas para reforçar a percepção de que essas instituições da elite são
irremediavelmente egoístas, tóxicas e destrutivas e, portanto, não podem ser
reformadas, devem ser destruídas. Isso, por sua vez, só assegura que haverá
muitos outros Brexits, e Trumps, em nosso futuro comum.”
Para além da análise do Brexit, há três novos pontos
sobre os resultados de ontem que gostaria de enfatizar, já que são exclusivos
das eleições dos EUA de 2016 e, principalmente, ilustram as patologias da
elite que resultaram nisso:
- Democratas
já começaram a se debater tentando culpar a qualquer um – exceto a si
próprios – pela derrota sofrida por seu partido na noite passada.
A lista de seus bodes expiatórios é previsível:
Rússia, WikiLeaks, James Comey, Jill Stein, Bernie Bros, veículos
de mídia, meios jornalísticos (incluindo, talvez com especial destaque, o The
Intercept) que “pecaram” ao publicar artigos negativos sobre sua candidata,
Hillary Clinton. Quem achar que o que aconteceu em estados como Ohio,
Pensilvânia, Iowa e Michigan pode ser atribuído a um dos itens dessa lista está
se afogando em mar de ignorância tão profundo que fica impossível expressar
isso em palavras.
Quando um partido político é derrotado, a
responsabilidade final pelo ocorrido (conforme
defendi após a derrota da esquerda nas eleições municipais no mês
passado) é de uma única entidade: o próprio partido. É tarefa do partido e do
candidato, e de ninguém mais, persuadir cidadãos a apoiá-los e encontrar meios
para fazê-lo. Na noite de ontem, os democratas claramente fracassaram na
realização dessa tarefa, e qualquer artigo de pensamento progressista ou
comentário pró-Clinton que não comece e termine tratando de seu próprio
comportamento, não tem nenhum valor.
Em suma, os democratas decidiram de forma voluntária
nomear uma candidata extremamente impopular, vulnerável e envolvida em
escândalos de corrupção, que era considerada por muitos como protetora e
beneficiária dos piores componentes da corrupção dessa elite. É surpreendente
que nós
que tentamos reiteradamente alertar os democratas de que a nomeação de
Hillary Clinton era uma grande aposta, que toda a evidência empírica mostrava
que ela poderia perder para qualquer candidato republicano e
que Bernie Sanders seria um candidato muito mais forte, especialmente nesse
contexto, estejam agora sendo culpados pelas mesmas pessoas que insistiram em
ignorar todos os dados e nomeá-la da mesma forma.
São apenas mecanismos de transferência de culpa e
autopreservação. O crucial é o que tudo isso revela sobre a mentalidade do
Partido Democrata. Pense no tipo de pessoa que eles escolheram como candidata:
alguém que, quando não estava jantando com monarcas sauditas e sendo saudada
por tiranos em Davos que lhe deram cheques de milhões de dólares, percorria os
corredores dos bancos de Wall Street e de grandes corporações, enchendo os
bolsos com honorários de 250 mil dólares por cada discurso secreto de 45
minutos, embora já fosse extremamente rica com a venda de seus livros, e embora
seu marido já tivesse ganhado milhões de dólares da mesma forma. Ela fez tudo
isso sem a menor preocupação sobre como isso contaminaria a percepção dela e do
Partido Democrata, como ferramentas corrompidas, aristocráticas e protetoras do status
quo de que se beneficiam os ricos e poderosos: o pior comportamento
possível para esta era pós-crise econômica de 2008, globalizada e repleta de
fábricas destruídas.
Não é preciso dizer que Trump é um sociopata vigarista,
obcecado com seu enriquecimento pessoal: o oposto de um verdadeiro defensor dos
oprimidos. Isso é muito óbvio para ser discutido. Mas, como fez Obama com
sucesso em 2008, ele pôde se apresentar como um plausível inimigo do sistema de
Washington e Wall Street, que prejudicou tantas pessoas, enquanto Hillary posa
de leal guardiã e beneficiária máxima desse sistema.
Trump jurou destruir o sistema que as elites tanto amam
(por um bom motivo) e as massas odeiam (por motivos igualmente justificáveis),
enquanto Clinton prometeu administrá-lo de maneira mais eficiente. Essa,
como o
indispensável artigo de Matt Stoller para The Atlantic documentou
três semanas atrás, foi a escolha conivente que o Partido Democrata fez décadas
atrás: abandonar seu apelo popular e se tornar o partido dos tecnocratas
proficientes, dos gerentes do poder da elite pouco benevolentes. Essas são as
sementes de cinismo e interesse próprio que foram plantadas, e agora essa
plantação está sendo colhida.
É claro que há diferenças fundamentais entre a versão
de “mudança” de Obama e a de Trump. Mas em termos gerais – exatamente como
essas mensagens são geralmente assimiladas – os dois eram percebidos como
forças externas em uma missão para derrubar as estruturas da elite corrupta,
enquanto Clinton era vista como devota do fortalecimento delas. Essa foi a
escolha dos democratas – satisfeitos com as autoridades do status quo,
acreditando em sua bondade –, e qualquer tentativa honesta de encontrar o
principal responsável pela derrota de ontem deve começar através de um grande
espelho.
- É
indiscutível que o racismo, a misoginia e a xenofobia fazem parte de todos
os setores da sociedade americana, mesmo analisando sua história, antiga
ou recente, de forma superficial.
Não foi a toa que todos os presidentes americanos até
2008 foram brancos e que todos os 45 presidentes eleitos sejam homens. Não há
dúvida de que essa patologia teve um papel fundamental no resultado de ontem.
Mas este fato responde a muito poucas questões, e levanta outras cruciais.
Para começar, deve-se encarar o fato de que Barack
Obama foi eleito duas vezes e está prestes a deixar o cargo como um presidente
extremamente popular: com uma avaliação mais
positiva que a de Reagan. Os EUA não eram menos racistas e xenófobos em
2008 e 2012 do que são agora. Mesmo democratas irredutíveis que gostam de
classificar seus oponentes como fanáticos agora reconhecem que uma análise mais
complexa se faz necessária para entender o resultado dessa eleição. Como disse Nate Cohn,
do New York Times: “Clinton sofreu suas maiores derrotas em
lugares onde Obama era mais forte entre eleitores brancos. Não é simplesmente
uma história de racismo”. Matt Yglesias reconheceu que
a alta aprovação de Obama é inconsistente com a caracterização dos EUA como se
fosse um “país envenenado pelo racismo”.
As pessoas frequentemente falam sobre
“racismo/sexismo/xenofobia” versus “sofrimento econômico” como se fossem
totalmente distintos. É claro que há elementos substanciais de ambas as coisas
na base eleitoral de Trump, mas as duas categorias estão intimamente ligadas:
quanto mais sofrimento econômico as pessoas enfrentam, mais irritadas ficam, e
se torna mais fácil direcionar sua insatisfação para bodes expiatórios.
O sofrimento econômico muitas vezes alimenta o
fanatismo. É verdade que muitos dos eleitores de Trump são relativamente mais
ricos e que muitos dos mais pobres da nação votaram em Clinton, mas, como
Michael Moore advertiu,
essas partes do país que foram mais afetadas pelo livre comércio e pelo globalismo
– Pensilvânia, Ohio, Michigan, Iowa – estavam repletas de raiva e “veem Trump
como um possível coquetel molotov humano que eles gostariam de lançar no
sistema para explodi-lo”. Esses estados foram decisivos para a vitória de
Trump.
Como disse Tim
Cartey, do Washington Examiner: “Eleitores brancos de baixa renda
do interior da Pensilvânia votaram em Obama em 2008 e em Trump em 2016, e sua
explicação é a supremacia branca? Interessante”.
Acabar com estas desigualdades estruturais é, há muito
tempo e ainda hoje, um desafio central para os EUA. Mas uma maneira de garantir
que essa dinâmica de bodes expiatórios perdure, em vez de sucumbir, é continuar
a abraçar um sistema que exclui e ignora uma grande parte da população. Hillary
Clinton foi vista, com razão, como devota fiel, agente reverenciada e grande
beneficiária desse sistema, e, portanto, não poderia ser vista como uma
protagonista da luta contra ele.
- Durante
as últimas seis décadas e, particularmente, durante os últimos quinze anos
da interminável guerra ao terror, ambos os partidos políticos se juntaram
para construir um sistema de poder autoritário, destrutivo e de caráter
invasivo sem precedentes, acompanhado de um aumento desenfreado de
autoridade para o Poder Executivo.
Como resultado, o presidente dos EUA comanda um vasto
arsenal nuclear que poderia destruir o planeta inteiro mais de uma vez; o mais
letal e mais caro exército já desenvolvido na história da humanidade; autoridades
legais que lhe permitem executar inúmeras guerras secretas ao mesmo
tempo, prender pessoas
sem o devido processo legal, e selecionar
pessoas (inclusive cidadãos americanos) para serem assassinadas sem
supervisão alguma; agências domésticas de aplicação da lei, construídas para
parecer e agir como um exército paramilitar; um Estado penal crescente, que
permite prisões com mais facilidade do que a maioria dos países ocidentais; e
um sistema de vigilância eletrônica propositadamente projetado para ser
onipresente e ilimitado, inclusive no território dos EUA.
As pessoas que vêm alertando sobre os sérios perigos
que esses poderes representam têm sido desprezadas com base no argumento de que
esses líderes que controlam o sistema são benevolentes e bem-intencionados.
Portanto, recorreram à tática de incentivar as pessoas a imaginarem o que
aconteceria se um presidente que consideram pouco benevolente chegasse ao
poder. Esse dia chegou.
Espera-se que essas circunstâncias, no mínimo, criem o ímpeto de que as linhas
partidárias e ideológicas se unam para finalmente impor limites a esses poderes
que nunca deveriam ter sido outorgados. Esse empenho tem de começar já.
* * * * *
Por muitos anos, os EUA — assim como o Reino Unido e
outros países do ocidente — embarcaram em um rumo que praticamente garantiu o
colapso da autoridade da elite e uma implosão interna. A invasão do Iraque, a
crise financeira de 2008, a situação do sistema prisional e as guerras sem fim,
os benefícios obtidos pela sociedade foram dirigidos quase que exclusivamente
às instituições de elite, principais responsáveis pelo fracasso e às custas de
todo o resto.
Era apenas uma questão de tempo para que tudo isso resultasse
em instabilidade, reações e rupturas. Tanto o Brexit quando a eleição de Trump
são sinais inequívocos desse resultado. A única questão é se estes dois eventos
serão o ápice deste processo ou apenas seu começo. E isso, por sua
vez, será determinado pelo aprendizado – e internalização – dessas
importantes lições, ou se serão ignoradas em favor de campanhas que lavam suas
mãos de culpa e a direcionam para outros.
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